|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
CONTARDO CALLIGARIS
Um circo de rins, fígados e informações confidenciais
Estreou sábado, no Sesc Pinheiros, em São Paulo, "Um
Circo de Rins e Fígados", peça que
Gerald Thomas escreveu especialmente para Marco Nanini (em
cartaz até o fim de junho).
Na abertura da peça, Nanini recebe um monte de caixas que contêm documentos secretos e pedaços de corpo (rins, fígados e
-aprendemos mais tarde- destroços de sua musa inspiradora).
Tudo isso foi enviado por João
Paradeiro, que planeja instalar
uma maqueta de Brasília no
meio da sala de Nanini. Com isso,
talvez seja possível os caminhos
pelos quais o governo nacional
sempre dá errado.
Gerald Thomas foi muito próximo de Samuel Beckett, que numerosas histórias literárias insistem
em definir como o mestre do teatro do absurdo. Nunca entendi o
porquê desse apelido. Tome "Esperando Godot", a peça mais conhecida de Beckett: qualquer um
que tenha freqüentado uma roda
de padaria sabe que a peça (seus
diálogos e sua história de espera
não se sabe de quê) é absolutamente realista.
O mesmo vale para o "Circo",
de Gerald Thomas. À primeira
vista, talvez você ache fantasioso
ou estranho o começo que acabo
de descrever. Mas eu me senti
imediatamente em casa, pois recebo, a cada dia, exatamente os
mesmos pacotes que chegam à casa de Nanini.
Pedaços de corpo? Escrevo no
domingo; acordei tranqüilo, abri
a porta com o café na mão e eis
que a Folha me entregou os corpos torturados dos guerrilheiros
do Araguaia, 1.500 esqueletos de
iraquianos exterminados por Sadam Hussein e nove turistas feridos ou mutilados no Egito. Sábado, para variar, eu tinha recebido
o e-mail de uma amiga antropóloga que participa de uma investigação internacional sobre comércio de órgãos para transplante. Quer mais?
Quanto aos documentos, Nanini tem sorte. João Paradeiro lhe
manda apenas as provas do envolvimento americano no golpe
de 64. Eu costumo receber, ao
mesmo tempo, documentos segundo os quais as provas desse
envolvimento foram divulgadas e
fabricadas não por João Paradeiro, mas pela KGB, o que, obviamente, confunde meus pensamentos.
Tudo bem, você dirá, mas e os
destroços da musa? Por que o corpo da musa que nos inspira (na
peça, a maravilhosa Fabiana Guglielmetti) chegaria aos pedaços
pelo correio? Georges Bataille (citado na peça) nos lembraria que o
erotismo e o horror são companheiros. Mas podemos ser mais
específicos. Na modernidade, o
poder não é mais um atributo de
nascença; não é preciso ser marquês para tornar-se presidente.
Com isso, a distribuição do poder
pára de ser um dado da natureza
e se torna um vasto campo de fantasias. Passamos a sonhar com o
poder como sonhamos com conquistas amorosas, e os sonhos se
confundem: o poder se torna erótico e o erotismo é invadido por
devaneios de domínio e de crueldades sofridas ou infligidas. As
fantasias sexuais do protagonista
da peça (não as explicitarei para
preservar o suspense) são a expressão lógica de nossa confusão
de poder com sexo.
Acréscimo de segunda-feira: alguém me diz, com espanto e vergonha, que as descrições de tortura do jornal de domingo produziram nele uma estranha excitação.
Pois é, o amor é aos pedaços.
Quanto à maqueta de Brasília
para entender o que deu errado,
todos recebemos propostas análogas a cada dia. E a maqueta cresce quando descobrimos que as
coisas começaram a dar errado
muito antes de Brasília...
Em suma, desde o início, a peça
de Gerald Thomas é realista demais. Dica para as histórias literárias: Gerald Thomas é um dramaturgo do teatro da lucidez.
Agora, esse retrato do desamparo moderno poderia ser triunfalista, no estilo "somos os últimos
arautos de um mundo melhor",
ou lamuriante, no estilo "somos
os últimos representantes de uma
espécie extinta".
Ora, Gerald Thomas escolhe nos
fazer rir. É possível que a alegria e
o riso sejam jeitos de transformar
o mundo tão eficazes quanto a indignação e, às vezes, menos hipócritas do que ela. Exemplo: "Se
fosse hoje, eu pegaria em armas e
seguiria o Che pelas cordilheiras
alpinas atrás de Emmentaler,
Gruyère, Appenzeller ou qualquer
outro queijo suíço".
O cômico está no texto e, obviamente, na arte de um ator portentoso. Mas a função de Nanini na
peça não é só a de dar prova de
seu imenso talento. Gerald Thomas escreveu para um protagonista que é um ator porque o homem moderno é um ator. A vulnerabilidade narcisista do ator é
a nossa. Além de recebermos a cada dia pacotes de João Paradeiro,
somos todos atores. Como diz o
texto, nossa "existência inteira é
validada, ou não, através do
aplauso ou do amor de uma platéia", sempre.
No final da peça, é tocado um
arranjo de samba do hino nacional (feito por Ivo Meirelles) e Nanini veste a bandeira. O texto da
peça diz que o Brasil é um problema sem solução, mas que é (console-se) um problema maravilhoso. O momento é comovedor porque o Brasil se torna assim o símbolo de uma época feita de problemas sem solução. Talvez essa
seja a única razão tolerável e legítima para qualquer patriotismo.
Acréscimo de terça-feira: a peça
cresce na lembrança, e ainda agora me surpreendo rindo sozinho,
pensando em Nanini e no "nosso"
circo.
@ - ccalligari@uol.com.br
Texto Anterior: Celebridade: "Tira Onda" emperra na falta de graça Próximo Texto: Panorâmica - Fotografia: Jornalistas da Folha são premiados Índice
|