São Paulo, sábado, 05 de maio de 2007

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Entrevista - Sábato Magaldi

Brecht é o Shakespeare da nossa era

Prestes a completar 80 anos, Magaldi avalia obra do autor alemão e relembra sua convivência com Nelson Rodrigues e Sartre

André Durão/Folha Imagem
O crítico Sábato Magaldi, na cobertura do prédio onde mora, no Rio, com vista para a praia de Copacabana


Sem festas, conforme prefere, o crítico e historiador de teatro Sábato Magaldi completa 80 anos na quarta, dia 9. Ele iniciou a carreira no Rio, em 1950, como repórter e crítico do "Diário Carioca", transferindo-se para São Paulo três anos depois, para dar aulas na Escola de Arte Dramática (EAD), posteriormente incorporada pela Universidade de São Paulo (USP).

FERNANDO MARQUES
ESPECIAL PARA A FOLHA

As lições na EAD e o trabalho no "Suplemento Literário", de "O Estado de S. Paulo" resultaram em alguns de seus 15 livros, entre eles o "Panorama do Teatro Brasileiro", de 1962, primeira síntese em bases modernas da cena no país. A partir de 1966, respondeu pela crítica de espetáculos no "Jornal da Tarde", exercida por 22 anos.
Seus livros mais recentes são as coletâneas de artigos "Depois do Espetáculo", de 2003, e "Teatro Sempre", lançada no ano passado. Há um novo livro à vista: vai se chamar "Presença do Teatro" e sairá pela Perspectiva em 2008.
Em entrevista à Folha, o mineiro de Belo Horizonte fala da chegada ao Rio, da amizade com Nelson Rodrigues (de quem organizou o "Teatro Completo"), de personalidades como Jean-Paul Sartre e do papel desempenhado por sua geração. E recomenda: "Dos gregos até aqui, o crítico tem que ler tudo". Veja trechos a seguir.
 

FOLHA - O senhor chegou ao Rio de Janeiro em 1948, para trabalhar com Cyro dos Anjos no serviço público. Como era aquela atmosfera aos olhos do recém-chegado?
MAGALDI -
Devo ter sido um secretário municipal de Cultura, em São Paulo [de 1975 a 1979, na gestão Olavo Setúbal], muito chato, porque o Cyro era de uma exigência tão grande que, para escrever um bilhete, tinha que ser uma coisa perfeita, literariamente [ri]. Eu acabei pegando um pouco essa doença, e fica muito difícil você, depois, se livrar dessas coisas. Então, eu sempre exigia muito também dos colaboradores.

FOLHA - Em 1950, o senhor começou a carreira no "Diário Carioca". Em 1951, entrevistou Nelson Rodrigues a respeito de "Valsa nš 6". Pode falar sobre ele?
MAGALDI -
Nelson era uma pessoa muito generosa, realmente um companheiro. Era um grande amigo e extremamente ciumento, quer dizer, você não podia gostar de outra coisa em teatro. Qualquer coisa que pudesse fazer sombra ao Nelson para ele era um problema. Tinha grande admiração por [Eugene] O'Neill, a grande paixão da vida dele.

FOLHA - No então recém-criado "Suplemento Literário" de "O Estado de S. Paulo", o senhor escreveu, em 1956, sobre a obra de Bertolt Brecht, que havia morrido naquele ano. Qual é a sua avaliação hoje de Brecht?
MAGALDI -
Na verdade, ela cresceu com o tempo. Talvez, nas montagens dele que vi na Europa, eu não tivesse grande interesse, ou elas não tenham me tocado muito. Mas, depois que li a obra dele toda e que vi ótimas montagens de peças dele, passei a considerar Brecht o Shakespeare do nosso tempo.

FOLHA - Em 1958, o senhor previu que "Eles Não Usam Black-Tie", de Gianfrancesco Guarnieri, iria "revolucionar a dramaturgia brasileira". A peça foi encenada pelo Teatro de Arena e ficou um ano em cartaz. Em que sentido se deu aquela revolução?
MAGALDI -
O nosso teatro, em geral, naquela época era muito encaminhado para a comédia de costumes. O Nelson era uma exceção nisso, isso não se afinava com a visão dele do mundo. Eu senti que "Black-Tie" era uma peça que colocava o problema social na dramaturgia brasileira. Essa peça acabou criando toda uma nova corrente, que o Guarnieri aprofundou, o [Augusto] Boal participou dela, o Vianinha participou dela; [tratava-se] de dar um colorido social muito mais coerente e sério para a dramaturgia.
Passou a ser um problema marcante para essa geração e, desse ponto de vista, a influência de Brecht foi grande. Todo mundo começou a se interessar por ele, e o Brasil estava num momento de ebulição política, então isso funcionou muito. A posição do Arena era nitidamente uma posição de esquerda, contrária à simples brincadeira. Esse grupo deu uma dimensão social ao teatro brasileiro, que continua.

FOLHA - Na condição de repórter, o senhor ouviu gente como o filósofo e escritor francês Jean-Paul Sartre, que veio ao Brasil em 1960. Pode lembrar essas entrevistas?
MAGALDI -
Sartre, com uma formação filosófica muito grande, era uma pessoa com os pés fincados na terra. Além do mais, era extremamente gentil, tinha uma paciência com os repórteres... Coisa que a mulher dele já não tinha; Simone de Beauvoir não deixou uma imagem simpática na passagem pelo Brasil. As pessoas não gostavam muito dela, talvez até pelo contraste com o Sartre. Ele tinha uma curiosidade, um interesse em saber das coisas. O Brasil era um país que estava despontando, e sempre houve uma ligação muito grande entre a França e o Brasil. Sartre provavelmente quis saber por quê, como isso funcionava. Por outro lado, era um autor já muito lido no país.

FOLHA - Seu "Panorama do Teatro Brasileiro" saiu em 1962 e se tornou referência para os estudos teatrais. Como avalia o livro hoje?
MAGALDI -
Naquela ocasião, o livro, de um lado, deu relevo ao aspecto histórico, vem de [José de] Anchieta, passa por Machado [de Assis], até aqui, mas a importância do livro foi que viu o teatro brasileiro com uma visão moderna. As coisas que eram escritas sobre o teatro nacional, à parte o Décio [de Almeida Prado], eram muito velhas; pessoas que não tinham o menor valor literário eram endeusadas. O pessoal não tinha uma visão moderna do teatro; coisas que montavam no Rio de Janeiro, vagabundas, eram consideradas importantíssimas no teatro brasileiro. Havia uma luta de uma velha geração, que tinha desaparecido como criador teatral em função dos novos valores, realmente outros valores. Aí, surgiram, depois do Nelson, o Boal, o pessoal do Arena, o Vianinha. Houve um movimento muito importante, que não tinha vez na dramaturgia antiga brasileira.

FOLHA - Quais são as qualidades indispensáveis a um crítico?
MAGALDI -
Primeiro, o crítico tem que conhecer teatro profundamente, pelo menos do teatro grego até hoje (ri), ele tem que ler. Isso é fundamental. Depois, tem que conhecer o mecanismo teatral. Não adianta só o dramaturgo ter um bom texto; se ele não sabe transformar aquilo em matéria teatral verdadeira, em cena, não funciona. O crítico tem que conhecer todos esses aspectos. Nenhum crítico é onisciente, mas você deve saber colocar um pouco a circunstância de cada coisa. Se um grupo não tem muitos elementos, muito dinheiro para fazer, nos figurinos e no cenário, uma coisa muito rica, você precisa ter um outro valor, equivalente.
O crítico que não conhece história do teatro, que não conhece as necessidades de uma boa interpretação, o que é uma boa direção, e que não tem também uma sensibilidade para valorizar os figurinos não pode ser crítico. Ele tem que ter essa abertura. Às vezes, você tem mais uma, tem menos outra [dessas qualidades], isso acontece com todo crítico, naturalmente, porque é muito difícil alguém dominar tudo com perfeição. Mas o ideal é estar preparado em todos esses setores.


FERNANDO MARQUES é jornalista, doutor em literatura brasileira pela Universidade de Brasília (UnB). Publicou "Retratos de Mulher" (poemas, Varanda) e "Zé" (teatro, Perspectiva).

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