São Paulo, sábado, 05 de maio de 2007

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MANUEL DA COSTA PINTO

Passaportes sem fotografia

"Geografia do Romance" traz ensaios de Carlos Fuentes sobre Borges, Italo Calvino e Juan Goytisolo, entre outros

A REPERCUSSÃO em torno da reedição de "Kafka: Pró e Contra", de Günther Anders (Cosacnaify), teve como efeito reavivar um debate sobre o realismo literário que "Geografia do Romance", de Carlos Fuentes, problematiza em chave contemporânea.
O ensaísta alemão afirmou que Kafka, longe de ser um autor alegórico, é um "fabulador realista", fórmula que acabou sendo valorizada menos por seu teor heurístico do que como forma de desmerecer leituras metafísico-religiosas. Ironicamente, essa recepção de Anders revela uma preocupação com o realismo da representação que Kafka parecia ter enterrado, mas que assim se mostra indissociável, senão da literatura, ao menos do romance.
Não é casual que Fuentes use o autor de "O Processo" como ponta do iceberg. Mencionando um político para quem "Kafka, se tivesse nascido mexicano, teria sido um escritor costumbrista" (ou seja, o cronista de uma realidade absurda), ele vê no escritor tcheco aquele que "com maior imaginação, compromisso e verdade descreveu a universalidade da violência como passaporte sem fotografia do nosso tempo".
"Geografia do Romance" traz ensaios sobre Borges, Juan Goytisolo, Roa Bastos, Milan Kundera, György Konrád, Calvino e Salman Rushdie, num total de 11 autores.
O romancista mexicano procura neles a resposta à questão do ensaio de abertura, "O Romance Morreu?" -que diz respeito à perda do papel social do gênero como portador de novidades (como ocorria nos folhetins dos séculos 18 e 19, suplantados por sofisticadas tecnologias da informação) e a sua plasticidade formal: "Que pode dizer o romance que não se possa dizer de nenhuma outra maneira?"
É interessante notar (já que Fuentes não o faz) que tal pergunta jamais poderia ser feita em relação à poesia -o que demonstra uma diferença essencial entre esses dois continentes da linguagem literária. Apesar de falarmos de uma "poética do romance", ou da existência de gêneros híbridos como o "poema em prosa", existe um paradigma segundo o qual a palavra poética tem a opacidade das coisas (é uma estrutura do mundo exterior, como as notas de uma música), ao passo que a palavra prosaica tende para a transparência da linguagem instrumental (uma lente que nos permite contemplar o existente).
O que faz do romance uma forma de arte, portanto, é menos sua linguagem do que sua ficcionalidade, que torna essa função comunicativa ambígua: "O romance não mostra nem demonstra o mundo, senão que acrescenta algo ao mundo", escreve Fuentes. O autor de "A Morte de Artemio Cruz" descobre aí o sentido ético da escrita romanesca moderna, que no século 20 procurou fugir de apropriações por discursos ideológicos e de dicotomias entre realismo e imaginação: "O não-dito ultrapassa todo o dito ou o mal dito no discurso cotidiano da informação e da política".


GEOGRAFIA DO ROMANCE
Autor:
Carlos Fuentes
Tradução: Carlos Nougué
Editora: Rocco
Quanto: R$ 29 (192 págs.)


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