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ANTONIO CICERO
A filosofia e a língua alemã
Já que a França se portava como a herdeira de Roma, a Alemanha se identificaria com a Grécia
AO CABO de uma palestra que
fiz recentemente, perguntaram-me se concordo com a
tese de que só é possível filosofar em
alemão. Não foi a primeira vez. Essa
questão se tornou popular no Brasil
a partir de dois versos da canção
"Língua", de Caetano Veloso, a saber: "Se você tem uma idéia incrível
é melhor fazer uma canção/ Está
provado que só é possível filosofar
em alemão".
Ocorre que os versos que se encontram no interior de um poema
ou de uma canção não estão necessariamente afirmando aquilo que
afirmariam fora do poema, noutro
contexto. Por exemplo, no poema
de Carlos Drummond de Andrade
"O Sobrevivente", um verso diz:
"O último trovador morreu em
1914". Esse verso vale no poema pelo
efeito que causa: pouco importa que
seja verdadeiro ou falso. Seria diferente se, em vez de um verso, fosse
uma proposição num livro de história da literatura.
Nesse sentido, um poema é análogo a uma pintura. Um episódio da vida de Matisse ajuda a ilustrar esse
fato. Visitando o ateliê do mestre, ao
ver uma das suas últimas obras, uma
senhora comentou: "Parece-me que
o braço dessa mulher está muito
comprido". "Madame", respondeu
ele polidamente, "a senhora está
equivocada. Não se trata de uma
mulher, mas de uma pintura."
Analogamente, a quem quiser debater com Caetano a afirmação de
que só é possível filosofar em alemão, ele poderia responder: "Não se
trata de uma afirmação, mas de uma
canção". Na verdade, o verso em
questão possui uma forte carga irônica e provocativa: tanto mais quanto a afirmação de que só é possível filosofar em alemão é geralmente
atribuída a Heidegger, filósofo cujo
tema precípuo é o ser. Ora, logo no
início de "Língua", um verso ("Gosto
de ser e de estar") explora um importante privilégio poético-filosófico da língua portuguesa e de pouquíssimas outras línguas latinas,
que é a distinção entre ser e estar:
privilégio não compartilhado pela
língua alemã.
Mas, abstraindo da canção de Caetano, consideremos a própria tese
de Heidegger. Para ele, a língua que
hoje mais se aproxima da grega antiga -que considerava a língua do
pensamento por excelência- é a
alemã. Essa pretensão tem uma história. Os poetas e pensadores românticos da Alemanha inventaram
a superioridade filosófica do seu
idioma porque foram durante muito
tempo assombrados pela presunção, que lhes era opressiva, da superioridade do latim e do francês.
Como se sabe, o latim foi a língua
da filosofia e da ciência na Europa
inteira desde o Império Romano até
a segunda metade do século 18, enquanto o alemão era considerado
uma língua bárbara. Na segunda
metade do século 17 e no século 18, a
França dominou culturalmente a
Europa. Paris foi a nova Roma e o
francês o novo latim. O alemão Leibniz escreveu seus tratados filosóficos em latim e francês. O filósofo
alemão Christian Wolff e o jovem
Kant também escreveram em latim.
Na corte de Frederico o Grande, falava-se francês; nas escolas prussianas, o alemão, depreciado como
"língua de cocheiros", era proibido.
Não admira que os intelectuais
alemães -de origem burguesa ou
pequeno-burguesa- tenham reagido violentamente, tanto contra o
culto que a aristocracia do seu país
dedicava a tudo o que era francês
quanto contra o concomitante desprezo que reservava a tudo o que era
alemão. Para eles, já que a França se
portava como a herdeira de Roma, a
Alemanha se identificaria com a
Grécia. Se o léxico francês era descendente do latino, a morfologia e a
sintaxe alemãs teriam afinidades
com as gregas. Se modernamente o
francês, como outrora o latim, posava de língua da civilização universal,
é que eram superficiais a civilização
e a universalidade; o alemão seria, ao
contrário, a língua da cultura e da
particularidade germânica: autêntica, profunda, e o equivalente moderno do grego.
Levando isso em conta, estranha-se menos o fato de que Heidegger tenha sido capaz de querer crer que a
superficialidade que atribui ao pensamento ocidental moderno -o "esquecimento do ser"- tenha começado com a tradução dos termos filosóficos gregos para o latim; ou de
afirmar que os franceses só consigam começar a pensar quando
aprendem alemão.
Estranho é que haja franceses ou
brasileiros que acreditem nesses
mitos germânicos, quando falam
idiomas derivados da língua latina,
cujo vocabulário é rico de 2000 anos
de filosofia, e que tinha -ela sim-
enorme afinidade com a língua grega, além de ter absorvido diretamente a sua herança.
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