São Paulo, terça, 5 de maio de 1998

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Documento-ficção vê solidão dos "latinos' na América

ARNALDO JABOR

da Equipe de Articulistas

"Mi cabeza esta un burrito, señor, si, burrito", aquela comida cheia de legumes e pedaços de carne misturados, "mi cabeza" está assim. Matei sim, eu matei o cachorro, "I confess, my name is Arquibaldo", sim senhor juiz. Não sei ler... não sei como soletrar meu nome, Arquibaldo, de Tampico.
Eu cheguei aqui nos Estados Unidos pelos fundos. Eu fiquei lavando prato na cozinha daquele restaurante na fronteira, até que um dia a porta da cozinha abriu e eu vi que eu não tinha chegado na América ainda, que eu ainda estava na fronteira, naquele cano de esgoto cheio de ratos que eu atravessei, senhor juiz, que eu não tinha chegado na sala onde estavam aquelas mulheres louras, aqueles gordos de terno, que eu nunca ia chegar lá.
A mesma coisa eu senti, depois, quando eu trabalhei num "hamburguer joint" e quando eu dava o sanduíche, eu pensava: "Por que eu sempre estou do lado "de cá' do sanduíche?".
E foi aí que eu reparei que ninguém me olhava. Sim, eu sou baixinho, com esta cara de índio e este bigodinho que eu acho bonito -também "tengo mi vanidad", Mr. Judge-, mas ninguém me olhava, nem os negros nem os brancos.
Eu pensava: "Os negros olham os brancos, os brancos olham os negros. E eu, por que não me olham?". Quando eu fui trabalhar na "deli" do coreano Kim, ele não falava inglês nem eu, e ele não me olhava, só gritava e eu tinha de adivinhar: "Lava o chão, limpa a privada!".
Uma vez, o capataz do rancho do Texas, em que eu trabalhava 16 horas por dia, disse: "Se tiver um "chicano' ou um preto na fila, eu pego o chicano que é mais barato e faz melhor "dirty job'!".
Eu comecei a me achar invisível, señor, e entendi que eu era o "preto dos pretos" e que eu tinha de fazer o trabalho sujo que ninguém pega na América. E eu ficava olhando os porcos berrando, e eu enfiava a faca no pescoço deles, e eu só via minha mão, com a faca matando porco... tem fazenda que mata com choque, mas essa era de faca.
O senhor acha que o negro mais negro "fucked up", duro, vai matar porco? "No way, no fucking way sir..." Nem depenar galinha, porque o senhor, "sorry", vai ao restaurante comer galinha com batatinha e nem sabe o que é ficar estrangulando uma galinha, "uéé", outra galinha, "uéé", outra galinha, "uéé!". A gente arranca a cabeça e a galinha pula. Eu gostava de ver galinha pulando sem cabeça.
Eu empacotei carne, colhi maçã, algodão, fiz faxina na rodoviária, e então eu fui percebendo que meu valor era justamente "não ser" olhado, que eu valia ao contrário, quanto mais sujo, mais silencioso, mais eu valia.
O coreano ou o chinês ou o irlandês me esculhambava e eu dizia: "Si señor...". Eles não querem os pretos, que preto só reclama, canta rap, fala "brother" e só vêem a divisão entre os brancos e eles.
Eu não, eu sorria, eu descobri que quanto mais sorria e dizia "gracias, senhor" eu ganhava mais, si señor, minha boca doía de tanto eu sorrir, eu já vivia de boca aberta, sorrindo...
Então eu descobri que nós "chicanos" não reclamamos de nada, a gente obedece e vale pouco. Esse é nosso valor. Nada temos, nem coragem, nem consciência, nem orgulho. Essa é a mercadoria que temos para oferecer...
Se a gente conseguir ser bem sujo, bem miserável e barato, como nós somos 30 milhões na América, pode ser que a gente volte para casa mais rico, mais bonito, feito lixo reciclado.
Foi nessa época que eu comecei a distribuir folhetinho ali na 8ª Avenida para os homens verem as mulheres nuas no "peep show"; eu distribuía o folhetinho e dizia: "Come on, man, enjoy the show, live nudes, big tits, girls!!".
E depois, de madrugada, eu ia limpar as cabinezinhas onde a moçada tocava punheta, si señor, pois o cara ficava olhando pelo vidro a mulher tirar a roupa e abrir as pernas e o cara ali, "jerking off", tudo bem... cada um sabe de si.
Ninguém me via, ninguém falava comigo, eu era "el hombre invisible" que limpava o papel higiênico embolado no chão e eu achava que a mulher do outro lado do vidro estava me vendo. Uma vez, uma mulher dormiu ali, eu fiquei vendo ela dormir nua na cama, eu, que nunca conheci mulher.
Foi nesse tempo que eu dei para chorar, sem motivo; eu chorava assim, de repente, porque o coreano, digamos, gritou comigo: "kiau!".
Ele gritava assim: "kiau!"... feito um gato... e nessa época eu dormia no fundo da "deli" do coreano, em cima de uns sacos, e num cantinho longe tinha uma televisão que eu ficava olhando até dormir e, um dia, na televisão, eu vi um anúncio de "taco", aquela comida do "Taco Bell", que era um cachorrinho falando espanhol na TV, um cachorrinho mexicano com cara de coreano, um "chi hua hua" anunciando "burritos".
O cachorro falava espanhol e me olhava no olho. Acho que a primeira pessoa que me olhou na América foi o cachorro da TV, falando espanhol. Ele me dizia: "Eu sou você... tu eres yo, yo, yo", me olhando e rindo, o cachorro.
Aí eu não consegui mais trabalhar, ficava parado, e aí o coreano me mandou embora gritando: "Crazy, crazy... loco, loco!", e aí eu fiquei andando pela rua, e eu fui nos evangélicos, fiquei cantando e não adiantou, pois o cachorro não me saía da cabeça, latindo "yo, yo, yo!".
Aí, eu fui na televisão ver se achava o desgraçado do cachorro, e era o programa daquele Jerry Springer, com uma porção de "latinos" batendo uns nos outros e gritando: "Yo, yo!", e eu via aquelas cortinas douradas, aquelas luzes azuis, os "chicanos" cantando e as mulheres dançando de vestido vermelho... e aí... aí... é que chega, Mr. Judge, a explicação do "por que" eu estou aqui.
"Muy bien", neste dia eu tinha ido ao coreano, tentar receber meu dinheiro, com o cachorro na cabeça cantando "yo, yo, yo".
Quando estou lá dentro, eu vi o outro cachorro que a mulher loura tinha deixado preso na coleira, enquanto ela comprava salada, e foi aí que eu peguei a faca do coreano e matei o cachorro dela, que era branco e com a carinha encolhida também de coreano, e eu enfiei a faca nele como eu fazia com os porcos no Texas, e aí a mulher começou a berrar, e o coreano: "Crazy!", e os homens me pegando, e aqui estou eu, señor juiz, falando com usted, senhor, que também está me olhando, gracias.
E devo lhe dizer também, Mr. Judge, que nunca me senti tão bem, senhor... Sinto-me muy feliz... I am very happy, senhor... muchas gracias...



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