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Documento-ficção vê solidão dos "latinos' na América
ARNALDO JABOR
da Equipe de Articulistas
"Mi cabeza esta un burrito,
señor, si, burrito", aquela comida cheia de legumes e pedaços de carne misturados, "mi
cabeza" está assim. Matei sim,
eu matei o cachorro, "I confess,
my name is Arquibaldo", sim
senhor juiz. Não sei ler... não
sei como soletrar meu nome,
Arquibaldo, de Tampico.
Eu cheguei aqui nos Estados
Unidos pelos fundos. Eu fiquei
lavando prato na cozinha daquele restaurante na fronteira,
até que um dia a porta da cozinha abriu e eu vi que eu não
tinha chegado na América
ainda, que eu ainda estava na
fronteira, naquele cano de esgoto cheio de ratos que eu
atravessei, senhor juiz, que eu
não tinha chegado na sala onde estavam aquelas mulheres
louras, aqueles gordos de terno, que eu nunca ia chegar lá.
A mesma coisa eu senti, depois, quando eu trabalhei num
"hamburguer joint" e quando
eu dava o sanduíche, eu pensava: "Por que eu sempre estou
do lado "de cá' do sanduíche?".
E foi aí que eu reparei que
ninguém me olhava. Sim, eu
sou baixinho, com esta cara de
índio e este bigodinho que eu
acho bonito -também "tengo
mi vanidad", Mr. Judge-, mas
ninguém me olhava, nem os
negros nem os brancos.
Eu pensava: "Os negros
olham os brancos, os brancos
olham os negros. E eu, por que
não me olham?". Quando eu
fui trabalhar na "deli" do coreano Kim, ele não falava inglês nem eu, e ele não me olhava, só gritava e eu tinha de
adivinhar: "Lava o chão, limpa
a privada!".
Uma vez, o capataz do rancho do Texas, em que eu trabalhava 16 horas por dia, disse:
"Se tiver um "chicano' ou um
preto na fila, eu pego o chicano
que é mais barato e faz melhor
"dirty job'!".
Eu comecei a me achar invisível, señor, e entendi que eu
era o "preto dos pretos" e que
eu tinha de fazer o trabalho
sujo que ninguém pega na
América. E eu ficava olhando
os porcos berrando, e eu enfiava a faca no pescoço deles, e eu
só via minha mão, com a faca
matando porco... tem fazenda
que mata com choque, mas essa era de faca.
O senhor acha que o negro
mais negro "fucked up", duro,
vai matar porco? "No way, no
fucking way sir..." Nem depenar galinha, porque o senhor,
"sorry", vai ao restaurante comer galinha com batatinha e
nem sabe o que é ficar estrangulando uma galinha, "uéé",
outra galinha, "uéé", outra galinha, "uéé!". A gente arranca
a cabeça e a galinha pula. Eu
gostava de ver galinha pulando sem cabeça.
Eu empacotei carne, colhi
maçã, algodão, fiz faxina na
rodoviária, e então eu fui percebendo que meu valor era justamente "não ser" olhado, que
eu valia ao contrário, quanto
mais sujo, mais silencioso,
mais eu valia.
O coreano ou o chinês ou o
irlandês me esculhambava e eu
dizia: "Si señor...". Eles não
querem os pretos, que preto só
reclama, canta rap, fala "brother" e só vêem a divisão entre
os brancos e eles.
Eu não, eu sorria, eu descobri
que quanto mais sorria e dizia
"gracias, senhor" eu ganhava
mais, si señor, minha boca
doía de tanto eu sorrir, eu já
vivia de boca aberta, sorrindo...
Então eu descobri que nós
"chicanos" não reclamamos de
nada, a gente obedece e vale
pouco. Esse é nosso valor. Nada temos, nem coragem, nem
consciência, nem orgulho. Essa
é a mercadoria que temos para
oferecer...
Se a gente conseguir ser bem
sujo, bem miserável e barato,
como nós somos 30 milhões na
América, pode ser que a gente
volte para casa mais rico, mais
bonito, feito lixo reciclado.
Foi nessa época que eu comecei a distribuir folhetinho ali
na 8ª Avenida para os homens
verem as mulheres nuas no
"peep show"; eu distribuía o folhetinho e dizia: "Come on,
man, enjoy the show, live nudes, big tits, girls!!".
E depois, de madrugada, eu
ia limpar as cabinezinhas onde a moçada tocava punheta,
si señor, pois o cara ficava
olhando pelo vidro a mulher
tirar a roupa e abrir as pernas
e o cara ali, "jerking off", tudo
bem... cada um sabe de si.
Ninguém me via, ninguém
falava comigo, eu era "el hombre invisible" que limpava o
papel higiênico embolado no
chão e eu achava que a mulher
do outro lado do vidro estava
me vendo. Uma vez, uma mulher dormiu ali, eu fiquei vendo ela dormir nua na cama,
eu, que nunca conheci mulher.
Foi nesse tempo que eu dei
para chorar, sem motivo; eu
chorava assim, de repente, porque o coreano, digamos, gritou
comigo: "kiau!".
Ele gritava assim: "kiau!"...
feito um gato... e nessa época
eu dormia no fundo da "deli"
do coreano, em cima de uns sacos, e num cantinho longe tinha uma televisão que eu ficava olhando até dormir e, um
dia, na televisão, eu vi um
anúncio de "taco", aquela comida do "Taco Bell", que era
um cachorrinho falando espanhol na TV, um cachorrinho
mexicano com cara de coreano, um "chi hua hua" anunciando "burritos".
O cachorro falava espanhol e
me olhava no olho. Acho que a
primeira pessoa que me olhou
na América foi o cachorro da
TV, falando espanhol. Ele me
dizia: "Eu sou você... tu eres yo,
yo, yo", me olhando e rindo, o
cachorro.
Aí eu não consegui mais trabalhar, ficava parado, e aí o
coreano me mandou embora
gritando: "Crazy, crazy... loco,
loco!", e aí eu fiquei andando
pela rua, e eu fui nos evangélicos, fiquei cantando e não
adiantou, pois o cachorro não
me saía da cabeça, latindo "yo,
yo, yo!".
Aí, eu fui na televisão ver se
achava o desgraçado do cachorro, e era o programa daquele Jerry Springer, com uma
porção de "latinos" batendo
uns nos outros e gritando: "Yo,
yo!", e eu via aquelas cortinas
douradas, aquelas luzes azuis,
os "chicanos" cantando e as
mulheres dançando de vestido
vermelho... e aí... aí... é que
chega, Mr. Judge, a explicação
do "por que" eu estou aqui.
"Muy bien", neste dia eu tinha ido ao coreano, tentar receber meu dinheiro, com o cachorro na cabeça cantando
"yo, yo, yo".
Quando estou lá dentro, eu vi
o outro cachorro que a mulher
loura tinha deixado preso na
coleira, enquanto ela comprava salada, e foi aí que eu peguei a faca do coreano e matei
o cachorro dela, que era branco e com a carinha encolhida
também de coreano, e eu enfiei
a faca nele como eu fazia com
os porcos no Texas, e aí a mulher começou a berrar, e o coreano: "Crazy!", e os homens
me pegando, e aqui estou eu,
señor juiz, falando com usted,
senhor, que também está me
olhando, gracias.
E devo lhe dizer também, Mr.
Judge, que nunca me senti tão
bem, senhor... Sinto-me muy
feliz... I am very happy, senhor... muchas gracias...
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