|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
LITERATURA
Mostra reúne documentos e objetos pessoais para celebrar o centenário de nascimento do memorialista mineiro
Aos 100, Nava vence batalha pelo tempo
RODRIGO MOURA
ENVIADO ESPECIAL A JUIZ DE FORA
Guardado como um vinho, que
melhora com o tempo revelando
substâncias que não conhecia ainda em si -na expressão do crítico
Davi Arrigucci-, Pedro Nava
(1903-1984) iniciou a grande catedral de suas memórias no fim dos
anos 60, ao abandonar a medicina
que lhe garantiu o sustento.
Da publicação de "Baú de Ossos" (1972) até 1983, Nava escreveu seis volumes de memórias, compreendendo desde a história
de seus antepassados até 1937 ("O
Círio Perfeito"). E só interrompeu
a construção porque cometeu suicídio, em 1984, com tiro no ouvido, em um episódio ainda pouco esclarecido. Quando morreu, já
contava 35 páginas de "Cera das
Almas", o sétimo volume.
"Navalha do Tempo", a exposição que a Universidade Federal de
Juiz de Fora (UFJF) inaugura hoje, no exato centenário de seu nascimento e na sua cidade natal,
reúne novas provas da vivacidade
da escrita de Pedro Nava. A mostra traz pela primeira vez a público uma centena de documentos do arquivo do autor e objetos domésticos cedidos por familiares.
Entre as principais provas, há os
primeiros capítulos datilografados de todos os seus livros, cartas
trocadas com amigos e uma miríade de notas que revelam que
bom humor e amargor rimam
com certeza na obra do mineiro.
Prova de seu ânimo meticuloso
(herdado da medicina?), Nava
punha a folha dobrada na máquina e, depois da escrita, enriquecia
a margem com novas anotações,
desenhos, plantas esquemáticas
de casas e cidades, colagens. O recurso visual era para ele um importante aliado no esforço imaginativo de reconstituir cenários,
personagens e situações.
Mário de Andrade, de quem
Nava ilustrou a primeira edição
de "Macunaíma" (1928), se perguntou, ainda nos anos 20, se o jovem médico que formava a roda modernista mineira de "A Revista" seria grande artista ou poeta,
algo que se concilia no memorialismo e torna-se patente quando
temos acesso aos seus alfarrábios.
Não que a escrita de Nava tenha
sido mal recebida em vida. Para
seus pares, foi quase a confirmação de uma certeza. "Como escrever memórias depois de Nava?",
pergunta um perplexo Cyro dos
Anjos, outro modernista mineiro,
em carta enviada ao autor, se referindo ao "ímpeto de rasgar os 20
capítulos, já prontos, de minhas
memórias".
O missivista Nava está representado principalmente na célebre carta-testamento enviada a amigos como Drummond e Plínio Doyle em 1975, com orientações sobre o tratamento post-morten que desejava: grande injeção de formol ("pois atravessei a existência aterrado com a idéia de
ser enterrado vivo"), caixão de
pobre, sem homenagens. Não
poucos estudiosos articulam o
memorialismo naveano com a
tradição de interpretação contida
em ensaios centrais do século 20;
a historiadora Vanda Arantes vê
em Nava "o testemunho e o depoimento" sobre diversos aspectos analisados pelos ensaístas.
Em Nava, contudo, as tintas são
de forte carga literária, como atesta trecho de "Balão Cativo" (73):
"O porco também fossa e come a
merda do mineiro que cai das latrinas das fazendas -especadas
sobre os chiqueiros. Espírito de
porco, círculo vicioso, meio atropofágico. Porco nosso, imenso e
totêmico. Cozido, frito, assado,
recheado. Almoçado, jantado,
ceado, comungado, incorporado,
consubstanciado". O centenário
de Nava, diante de sua obra, é só
um dos cem motivos para lê-la.
O jornalista Rodrigo Moura viajou a convite da UFJF
Texto Anterior: Mônica Bergamo Próximo Texto: Frase Índice
|