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São Paulo, quinta-feira, 05 de junho de 2003

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LITERATURA

Mostra reúne documentos e objetos pessoais para celebrar o centenário de nascimento do memorialista mineiro

Aos 100, Nava vence batalha pelo tempo

RODRIGO MOURA
ENVIADO ESPECIAL A JUIZ DE FORA

Guardado como um vinho, que melhora com o tempo revelando substâncias que não conhecia ainda em si -na expressão do crítico Davi Arrigucci-, Pedro Nava (1903-1984) iniciou a grande catedral de suas memórias no fim dos anos 60, ao abandonar a medicina que lhe garantiu o sustento.
Da publicação de "Baú de Ossos" (1972) até 1983, Nava escreveu seis volumes de memórias, compreendendo desde a história de seus antepassados até 1937 ("O Círio Perfeito"). E só interrompeu a construção porque cometeu suicídio, em 1984, com tiro no ouvido, em um episódio ainda pouco esclarecido. Quando morreu, já contava 35 páginas de "Cera das Almas", o sétimo volume.
"Navalha do Tempo", a exposição que a Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) inaugura hoje, no exato centenário de seu nascimento e na sua cidade natal, reúne novas provas da vivacidade da escrita de Pedro Nava. A mostra traz pela primeira vez a público uma centena de documentos do arquivo do autor e objetos domésticos cedidos por familiares.
Entre as principais provas, há os primeiros capítulos datilografados de todos os seus livros, cartas trocadas com amigos e uma miríade de notas que revelam que bom humor e amargor rimam com certeza na obra do mineiro.
Prova de seu ânimo meticuloso (herdado da medicina?), Nava punha a folha dobrada na máquina e, depois da escrita, enriquecia a margem com novas anotações, desenhos, plantas esquemáticas de casas e cidades, colagens. O recurso visual era para ele um importante aliado no esforço imaginativo de reconstituir cenários, personagens e situações.
Mário de Andrade, de quem Nava ilustrou a primeira edição de "Macunaíma" (1928), se perguntou, ainda nos anos 20, se o jovem médico que formava a roda modernista mineira de "A Revista" seria grande artista ou poeta, algo que se concilia no memorialismo e torna-se patente quando temos acesso aos seus alfarrábios.
Não que a escrita de Nava tenha sido mal recebida em vida. Para seus pares, foi quase a confirmação de uma certeza. "Como escrever memórias depois de Nava?", pergunta um perplexo Cyro dos Anjos, outro modernista mineiro, em carta enviada ao autor, se referindo ao "ímpeto de rasgar os 20 capítulos, já prontos, de minhas memórias".
O missivista Nava está representado principalmente na célebre carta-testamento enviada a amigos como Drummond e Plínio Doyle em 1975, com orientações sobre o tratamento post-morten que desejava: grande injeção de formol ("pois atravessei a existência aterrado com a idéia de ser enterrado vivo"), caixão de pobre, sem homenagens. Não poucos estudiosos articulam o memorialismo naveano com a tradição de interpretação contida em ensaios centrais do século 20; a historiadora Vanda Arantes vê em Nava "o testemunho e o depoimento" sobre diversos aspectos analisados pelos ensaístas.
Em Nava, contudo, as tintas são de forte carga literária, como atesta trecho de "Balão Cativo" (73): "O porco também fossa e come a merda do mineiro que cai das latrinas das fazendas -especadas sobre os chiqueiros. Espírito de porco, círculo vicioso, meio atropofágico. Porco nosso, imenso e totêmico. Cozido, frito, assado, recheado. Almoçado, jantado, ceado, comungado, incorporado, consubstanciado". O centenário de Nava, diante de sua obra, é só um dos cem motivos para lê-la.


O jornalista Rodrigo Moura viajou a convite da UFJF


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