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CONTARDO CALLIGARIS
A dor dos outros
Graças ao fotojornalismo e
à televisão, para nós, a dor
dos outros não é apenas o acidente na esquina ou a doença de um
parente. Contemplamos a cada
dia o sofrimento humano pelo
mundo afora.
Podemos ignorar onde está a
Somália e qual é a razão que a
condena à fome, mas as imagens
de crianças somalis, esqueléticas e
inchadas, estão em nossa memória. Esquecemos os detalhes da
catástrofe étnica e política que explodiu a ex-Iugoslávia, mas nos
lembramos da cor do sangue nas
calçadas de Sarajevo. Não entendemos nada das facções que, no
Congo, massacram milhões, mas,
uma vez por mês, em algum jornal, encontramos o olhar de uma
criança congolesa amputada a
golpes de machete.
Nos anos 80, escrevi uma tese
que tratava dos campos nazistas
de extermínio. Percorri os porões
do horror até a náusea, de leitura
em leitura. Mas, ainda hoje, "genocídio" evoca imediatamente,
em mim, não palavras, mas imagens: as fotografias tiradas na liberação dos campos e aquele menino judeu, de boné, mãos levantadas e estrela-de-davi no peito...
Você sabe de que imagem estou
falando, pois temos em comum
não só o repertório de Hollywood,
mas também um arquivo fotográfico da dor.
Para refletir sobre os efeitos desse patrimônio contemporâneo,
Susan Sontag acaba de publicar
um livro pequeno e admirável:
"Regarding the Pain of Others"
(contemplando a dor dos outros),
editora Farrar, Straus and Giroux.
Muitas vezes, a significação das
imagens do arquivo da dor depende de quem olha. Talvez, 60
anos atrás, numa cervejaria de
Munique, a fotografia daquele
menino de boné tenha suscitado o
riso de um bando de SS. Talvez,
hoje, a fotografia de um tútsi levantando os braços mutilados
inspire alegria numa roda de hutus e vice-versa.
Mesmo assim, o arquivo tem
uma relevância moral. De um jeito que as palavras não alcançam,
ele lembra os atos dos quais nós,
humanos, somos capazes (o que
inspira cautela na hora de invocar o bom direito puxando a espada). Além disso, o arquivo estende o alcance de nossa simpatia. Partilho pouco com uma mulher argelina: separam-nos língua, religião, cultura e sonhos.
Mas, quando a vejo errando pelos
escombros de um terremoto em
que ela perdeu os filhos e os objetos que representavam sua história, "reconheço" imediatamente o
que ela sente. A dor decreta nossa
semelhança.
Ora, desde os anos 80, as imagens do arquivo da dor são objetos de ataques e críticas.
Começou com a idéia de que, à
força de contemplar, a gente se
acostumaria: o sofrimento dos
outros seria como a musiquinha
do caminhão do gás, que não nos
acorda mais. Logo, os fotógrafos
que arriscam (e, às vezes, perdem)
a vida para nos trazer imagens
abomináveis foram chamados de
"turistas de guerra", como se, por
eles, a dor se tornasse mais uma
atração no circo do mundo.
Sontag escreve sobre essa crítica
(que lhe parece ser "uma especialidade francesa", de Guy Debord
a Jean Baudrillard): "Segundo
uma análise influente, vivemos
numa "sociedade do espetáculo".
Cada situação deve ser transformada em espetáculo para ser real
ou seja, interessante para nós. (...)
A realidade abdicou. Só há representações: mídia". Consequência
disso: "Os cidadãos da modernidade, consumidores de violência
como espetáculo, adeptos da proximidade sem risco" (ou seja, da
proximidade com a foto de primeira página, e não com os fatos)
seriam assim "instruídos no cinismo".
Mas quem são os cínicos? Os espectadores, os fotógrafos ou os críticos? Sontag, referindo-se aos críticos: "Algumas pessoas fariam
qualquer coisa para evitar a comoção". Para esquecer o que as
imagens mostram de fato, é cômodo denunciá-las por elas serem imagens. Ganha-se, assim, a
suposta superioridade de quem
estaria desmascarando um truque em que todos caem.
Mas não é só isso. O que leva a
criticar a imagem é a incapacidade de responder ao olhar do menino congolês. Diremos que a
imagem é bonita demais (como
as fotos de Sebastião Salgado, não
é?) ou sensacionalista (o jornal só
quer vender, não é?), porque criticar a imagem é preferível a encarar nossa impotência diante dos
fatos.
Mais uma nota. As imagens da
dor dos outros são acusadas de
inspirar curiosidades mórbidas.
Procuraríamos jornais encharcados de sangue, assim como diminuímos a velocidade passando
por um acidente, na "esperança"
de ver sangue. Será que esse interesse não tem um fundo erótico
inconfessado?
Tem mesmo. E Sontag tem razão em constatar que os corpos
que sofrem rivalizam com os nus
na capa das revistas. Mas não há
nenhuma vergonha nisso. Na
agonia, os outros me aparecem
reduzidos aos seus corpos. Descubro assim um segredo de polichinelo: não "temos" um corpo, "somos" nosso corpo. Essa revelação
é fonte de angústia: cadê o ego,
cadê a valentia narcisista nesta
massa de carne que sofre? Mas redescobrir que "somos" um corpo,
mesmo na angústia, é também,
inevitavelmente, uma experiência erótica. Qualquer criança católica sabe disso, se seus sentidos
foram despertados diante das
imagens do martírio de santos e
santas.
E daí? Para esquecer nosso corpo, deveríamos também esquecer
a agonia dos outros?
ccalligari@uol.com.br
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