São Paulo, sexta, 5 de junho de 1998

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CINEMA - ESTRÉIAS
"O Encantador' vê a natureza como salvação

BERNARDO CARVALHO
especial para a Folha

Não é de ontem que Robert Redford tem uma queda pela natureza como salvação do homem -e da identidade masculina. Toda a mística de seus filmes joga com uma idealização do homem "natural", de um herói tipicamente americano, que pode ser tanto um exímio pescador como um caubói, contanto que sua alma seja autenticamente "selvagem" e pura, como a paisagem do estado de Montana, onde se passa a maior parte de "O Encantador de Cavalos".
Não poderia haver melhor metáfora para essa mitologia masculina do que um cavalo xucro ou traumatizado e ferido a ponto de se tornar intratável, como aparentemente o que está no centro desse melodrama baseado no primeiro romance, de 1995, de um roteirista de cinema, Nicholas Evans.
O personagem interpretado por Redford é um especialista em cavalos problemáticos, ele próprio traumatizado por um casamento desfeito que o levou a se afastar do resto do mundo e dos sentimentos. Uma releitura do velho mito do "cavaleiro solitário".
E, no entanto, para além das aparências, este não é um filme sobre cavalos, caubóis ou heróis americanos, ou sobre a alma masculina, mas um filme para mulheres (com um olhar feminino desse mundo de cavalos, caubóis e heróis americanos) e sobre uma mulher.
Tudo começa com um acidente pavoroso envolvendo duas adolescentes a cavalo e um caminhão numa estrada coberta de neve. Por milagre, mas com metade da perna amputada, uma das meninas sobrevive, assim como seu cavalo, embora seriamente ferido, e apesar dos conselhos da veterinária que deseja sacrificá-lo (este também é um filme sobre a determinação e a teimosia).
Para tirar a filha da prostração e do ressentimento com que encara sua nova condição de deficiente, a mãe vai descobrir do outro lado do país, na "América profunda", um homem capaz de "curar" o cavalo, que se tornou um demônio após o acidente, acreditando com isso poder curar, por tabela, também a própria filha.
Contra tudo (inclusive o bom senso e o marido), e abandonando o emprego de editora poderosa de uma revista nova-iorquina, ela vai atravessar os Estados Unidos com a filha e o cavalo rebocado num trailer, decidida a trazê-la de volta para a vida.
É mais uma vez essa idealização da travessia dos EUA, do mergulho numa condição mais "selvagem" e "natural", e portanto "autêntica", que serve aqui como último recurso de uma mãe desesperada para curar a alma desencantada da menina.
O "encantador de cavalos" vai funcionar como esse terapeuta um tanto mágico, capaz de compreender o lado animal sublimado pelos civilizados da cidade e de, pondo-os de volta em contato com a natureza que ignoram, ressuscitá-los.
E o mais incrível é que, para além de todas essas mistificações, de todos esses estereótipos, e para além de todos os recursos habituais e previsíveis do melodrama, Redford alcançou, por fim, o que há tanto tempo ensaiava: um filme extremamente sensível e emotivo, digno dos melhores dramas hollywoodianos (a começar pelos de John Huston) que o inspiraram.


Filme: O Encantador de Cavalos
Produção: EUA, 1998
Direção: Robert Redford
Com: Robert Redford, Kristin Scott Thomas, Sam Neill, Dianne Wiest e Scarlet Johansson
Quando: A partir de hoje, nos cines Ipiranga 2, Belas Artes-Villa Lobos e circuito


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