São Paulo, segunda-feira, 05 de julho de 2004

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LITERATURA/MEMÓRIA

Portuguesa deu vigor à poesia sobre o homem moderno

MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA

A escritora portuguesa Sophia de Mello Breyner Andresen -que morreu na última sexta-feira em Lisboa, aos 84 anos- pertencia à primeira geração de poetas que surgiram à sombra incomensurável de Fernando Pessoa e sob o impacto do grupo Presença (que consolidou o modernismo em Portugal).
Isso equivale a dizer que a autora de livros como "Mar Novo" (58) e "O Nome das Coisas" (77) deu continuidade e vigor a uma poesia marcada pela indagação metafísica sobre a condição problemática do homem moderno. Porém, ao contrário de muitos daqueles autores, que associavam a experiência de choque da modernidade ao prosaísmo e ao sarcasmo, Sophia imprimiu em sua poesia um tom mais solene, em que o ofício da escrita equivale à busca do absoluto -sem contudo se divorciar do mundo concreto, mas buscando nas coisas elementares um tipo de sacralidade.
Como escreveu o crítico Eduardo Lourenço, "quando se aproxima das coisas e avidamente procura "sempre" mais coisas, não é apenas o real que pretende alcançar, mas sobretudo a aliança primitiva (...), a ordem simbólica onde esse real adquire sentido e verdade. Entre a ordem simbólica e a aliança, a identidade é absoluta".
Nascida no Porto, contemporânea de nomes igualmente importantes como Jorge de Sena, Eugénio Andrade, Mário Cesariny e Alexandre O'Neil, manteve diálogo não só com Pessoa (principalmente a partir de "Dual", de 72), mas também com as celebrações órficas de Hölderlin e Rilke.
De certo modo, como observou a ensaísta Clara Rocha, a obra de Sophia pode ser vista como uma longa e fragmentária resposta ao célebre verso de Hölderlin: "Para que poetas em tempo de indigência?". Seus livros correspondem à busca de uma espécie de graal da linguagem, de um mundo e um tempo utópico, fechado em si mesmo, anterior à separação entre deuses e homens, essência e substância, ser e ente: "Exilamos os deuses e fomos/ exilados da nossa inteireza".
Ao mesmo tempo, por trás dessa nostalgia de uma Idade do Ouro da poesia há a consciência crítica que detecta as causas do desencantamento do mundo no "capitalismo das palavras" e nas "hidras de mil cabeças da eficácia que se avaria" -ou seja, na transformação do homem e da linguagem em utensílios tecnológicos.
Tal obra, entretanto, não se limita à poesia. Além de ser autora de livros de ficção e infanto-juvenis, Sophia também manteve um importante trabalho de reflexão sobre a literatura, como na série de aforismos "Arte Poética", no ensaio "O Nu na Antigüidade Clássica" ou em artigos, como o que dedicou em 1958 à poeta Cecília Meireles -não por acaso, a escritora brasileira que mais se aproxima de sua procura de um lirismo essencial.
Soma-se a essa produção uma prosa que traz ecos do surrealismo, como "Contos Exemplares", cujo título alude explicitamente às "Novelas Exemplares" de Cervantes e no qual encontramos parábolas sobre o embate entre o Bem e o Mal ("O Jantar do Bispo") ou sobre a reaparição de Cristo, que passeia despercebido pelas ruas do Porto ("O Homem").
Esses contos representam parcela menor na literatura de Sophia de Mello Breyner Andresen, mas ajudam a entender, pelo tom alegórico, o conjunto dessa obra que recebeu em 1999 o Prêmio Camões, mais importante honraria da língua portuguesa.



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