São Paulo, segunda-feira, 05 de julho de 2004

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NELSON ASCHER

Marlon Brando (1924-2004)

Enquanto o cinema tiver um público, o nome de Marlon Brando estará associado a alguns poucos grandes filmes. O ator, que morreu na semana passada, deixou sua marca em uma série de obras importantes dos anos 50 aos anos 70. Seu primeiro sucesso foi "Uma Rua Chamada Pecado" (1951), versão cinematográfica da peça de Tennessee Williams, na qual interpretou o violento e grosseiro Stanley Kowalski. Sua última aparição marcante foi como o coronel Kurtz, um militar que, irritado com seus superiores, resolve fazer sua guerra pessoal em "Apocalypse Now" (1979), a transposição para o Vietnã que Francis Ford Coppola realizou de uma novela de Joseph Conrad ("Heart of Darkness") ambientada originalmente na África colonial.
Desde o início de uma carreira que, para todos os efeitos, terminara há um quarto de século, os espectadores e a crítica não cessaram de reconhecê-lo como um grande ator, lhe atribuindo também as características de vários entre os personagens sucessivos que encarnou. Foi quase certamente o papel de Johnny Strabler, o líder de uma gangue de motoqueiros em "O Selvagem" (1953), que mais contribuiu para fixar sua imagem de desajustado ou rebelde, e isso numa época que logo conferiria as conotações mais positivas a ambos os termos.
Que Brando já tivesse de antemão consolidado tal imagem seguramente o ajudou a tornar convincentes personagens como Terry Malloy, o ex-boxeador que desafia o sindicato dos estivadores em "Sindicato de Ladrões" (1954), Fletcher Christian, o imediato do Bounty que se revolta contra seu capitão em "O Grande Motim" (1962), sir William Walker, o agente do governo inglês encarregado de provocar a insurreição dos escravos de uma ilha antilhana em "Queimada" (1969), ou Paul, o americano de meia-idade desencantado com a vida em "Último Tango em Paris" (1976).
Seus melhores papéis eram os de pessoas que, nem integralmente boas nem irredimivelmente más, vivem numa espécie de zona cinzenta onde os heróis são imperfeitos e os vilões, humanos. Não é à toa, portanto, que um dos ápices de sua carreira tivesse sido "O Poderoso Chefão" (1972). Como Don Vito Corleone, o fundador e chefe de uma "família" mafiosa, o ator leva à tela um amálgama complexo, tridimensional, que é concomitantemente um matador e um pai de família, um criminoso e um homem de negócios.
Embora não lhe faltasse talento, Brando se celebrizou graças a um fator mais difícil de descrever ou explicar: o carisma. Foi seu carisma que não apenas lhe permitiu dar vida aos personagens acima como demarcou igualmente suas limitações. Pois, uma vez que lhe faltava versatilidade, ele se viu condenado a desempenhar continuamente os mesmos papéis, ou melhor, um único papel: o de Marlon Brando. Daí que suas grandes atuações tenham sido em filmes em que o que se requeria dele era uma repetição da própria individualidade. Sua sorte, porém, advinha do fato de que o cinema pede aos atores e atrizes não tanto grandes proezas interpretativas quanto uma aura facilmente reconhecível pelo público.
Talvez seja o mistério desse carisma e a inexplicabilidade dessa aura que fizeram das biografias de estrelas cinematográficas um dos gêneros mais populares dos tempos modernos. Afinal, há pouquíssimos ramos nos quais a trajetória pessoal do artista ilumina menos os resultados de seu trabalho do que na arte dramática. Por exemplo, similaridades biográficas entre o ator e o personagem, mesmo quando existem, são em geral desimportantes.
Por outro lado, ao contrário do que pensa a crítica mais apegada ao texto, a biografia de um poeta ou romancista freqüentemente ajuda os leitores a entenderem seus escritos. Determinadas circunstâncias na vida de um escritor são capazes de elucidar uma passagem obscura, uma citação misteriosa, uma imagem estranha, e essa constatação vale para outros criadores, como pintores, escultores, músicos etc.
Quanto às vidas de atores e atrizes, porém, o que é que elas elucidam? Não há dúvida de que boa parte da curiosidade dos fãs decorre de seu caráter "picante": eles querem saber dos amores de seus ídolos e, quanto mais numerosos forem estes, melhor. Provavelmente é a biografia de atrizes que mais atrai leitores de ambos os sexos, porque, para os homens, elas dão acesso a um universo erótico feminino e, para as mulheres, falam de uma intimidade mais rica e liberada.
Ocorre que, como os "reality shows" têm demostrado recentemente, toda e qualquer intimidade alheia, não apenas a das celebridades, mas também a das pessoas comuns, desperta a curiosidade dos membros de nossa espécie. A vida secreta da vizinha pode ser tão interessante quanto a de Marilyn Monroe. E a vida de Brando teve decerto sua dose de eventos singulares. Ele era filho de alcoólatras e foi expulso do colégio por percorrer seus corredores de motocicleta. Rejeitou um Oscar de melhor ator. Teve nove filhos. Seu filho mais velho matou o namorado da irmã em 1990 e ficou na cadeia até 1996. Sua filha chamada Cheyenne se suicidou em 1995.
Nenhum dos eventos mencionados, contudo, nos faz apreciar ou entender melhor nem Stanley Kowalski, Fletcher Christian, William Walker e Vito Corleone, nem sequer o carisma do ator, algo que, como sugeriu Roland Barthes no seu ensaio sobre Greta Garbo, se deve a uma relação especial que alguém mantém com a câmara. Esta, durante cerca de três décadas, mostrou que gostava de Marlon Brando, transformando-o em algo que é mais e menos do que um ser humano: um mito feito de luz e celulóide.


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