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NELSON ASCHER
Marlon Brando (1924-2004)
Enquanto o cinema tiver
um público, o nome de Marlon Brando estará associado a alguns poucos grandes filmes. O
ator, que morreu na semana passada, deixou sua marca em uma
série de obras importantes dos
anos 50 aos anos 70. Seu primeiro
sucesso foi "Uma Rua Chamada
Pecado" (1951), versão cinematográfica da peça de Tennessee Williams, na qual interpretou o violento e grosseiro Stanley Kowalski. Sua última aparição marcante
foi como o coronel Kurtz, um militar que, irritado com seus superiores, resolve fazer sua guerra
pessoal em "Apocalypse Now"
(1979), a transposição para o
Vietnã que Francis Ford Coppola
realizou de uma novela de Joseph
Conrad ("Heart of Darkness")
ambientada originalmente na
África colonial.
Desde o início de uma carreira
que, para todos os efeitos, terminara há um quarto de século, os
espectadores e a crítica não cessaram de reconhecê-lo como um
grande ator, lhe atribuindo também as características de vários
entre os personagens sucessivos
que encarnou. Foi quase certamente o papel de Johnny Strabler,
o líder de uma gangue de motoqueiros em "O Selvagem" (1953),
que mais contribuiu para fixar
sua imagem de desajustado ou rebelde, e isso numa época que logo
conferiria as conotações mais positivas a ambos os termos.
Que Brando já tivesse de antemão consolidado tal imagem seguramente o ajudou a tornar
convincentes personagens como
Terry Malloy, o ex-boxeador que
desafia o sindicato dos estivadores em "Sindicato de Ladrões"
(1954), Fletcher Christian, o imediato do Bounty que se revolta
contra seu capitão em "O Grande
Motim" (1962), sir William Walker, o agente do governo inglês
encarregado de provocar a insurreição dos escravos de uma ilha
antilhana em "Queimada"
(1969), ou Paul, o americano de
meia-idade desencantado com a
vida em "Último Tango em Paris" (1976).
Seus melhores papéis eram os de
pessoas que, nem integralmente
boas nem irredimivelmente más,
vivem numa espécie de zona cinzenta onde os heróis são imperfeitos e os vilões, humanos. Não é à
toa, portanto, que um dos ápices
de sua carreira tivesse sido "O Poderoso Chefão" (1972). Como Don
Vito Corleone, o fundador e chefe
de uma "família" mafiosa, o ator
leva à tela um amálgama complexo, tridimensional, que é concomitantemente um matador e um
pai de família, um criminoso e
um homem de negócios.
Embora não lhe faltasse talento,
Brando se celebrizou graças a um
fator mais difícil de descrever ou
explicar: o carisma. Foi seu carisma que não apenas lhe permitiu
dar vida aos personagens acima
como demarcou igualmente suas
limitações. Pois, uma vez que lhe
faltava versatilidade, ele se viu
condenado a desempenhar continuamente os mesmos papéis, ou
melhor, um único papel: o de
Marlon Brando. Daí que suas
grandes atuações tenham sido em
filmes em que o que se requeria
dele era uma repetição da própria
individualidade. Sua sorte, porém, advinha do fato de que o cinema pede aos atores e atrizes
não tanto grandes proezas interpretativas quanto uma aura facilmente reconhecível pelo público.
Talvez seja o mistério desse carisma e a inexplicabilidade dessa
aura que fizeram das biografias
de estrelas cinematográficas um
dos gêneros mais populares dos
tempos modernos. Afinal, há pouquíssimos ramos nos quais a trajetória pessoal do artista ilumina
menos os resultados de seu trabalho do que na arte dramática. Por
exemplo, similaridades biográficas entre o ator e o personagem,
mesmo quando existem, são em
geral desimportantes.
Por outro lado, ao contrário do
que pensa a crítica mais apegada
ao texto, a biografia de um poeta
ou romancista freqüentemente
ajuda os leitores a entenderem
seus escritos. Determinadas circunstâncias na vida de um escritor são capazes de elucidar uma
passagem obscura, uma citação
misteriosa, uma imagem estranha, e essa constatação vale para
outros criadores, como pintores,
escultores, músicos etc.
Quanto às vidas de atores e atrizes, porém, o que é que elas elucidam? Não há dúvida de que boa
parte da curiosidade dos fãs decorre de seu caráter "picante":
eles querem saber dos amores de
seus ídolos e, quanto mais numerosos forem estes, melhor. Provavelmente é a biografia de atrizes
que mais atrai leitores de ambos
os sexos, porque, para os homens,
elas dão acesso a um universo
erótico feminino e, para as mulheres, falam de uma intimidade
mais rica e liberada.
Ocorre que, como os "reality
shows" têm demostrado recentemente, toda e qualquer intimidade alheia, não apenas a das celebridades, mas também a das pessoas comuns, desperta a curiosidade dos membros de nossa espécie. A vida secreta da vizinha pode ser tão interessante quanto a
de Marilyn Monroe. E a vida de
Brando teve decerto sua dose de
eventos singulares. Ele era filho de
alcoólatras e foi expulso do colégio por percorrer seus corredores
de motocicleta. Rejeitou um Oscar de melhor ator. Teve nove filhos. Seu filho mais velho matou o
namorado da irmã em 1990 e ficou na cadeia até 1996. Sua filha
chamada Cheyenne se suicidou
em 1995.
Nenhum dos eventos mencionados, contudo, nos faz apreciar
ou entender melhor nem Stanley
Kowalski, Fletcher Christian, William Walker e Vito Corleone,
nem sequer o carisma do ator, algo que, como sugeriu Roland Barthes no seu ensaio sobre Greta
Garbo, se deve a uma relação especial que alguém mantém com a
câmara. Esta, durante cerca de
três décadas, mostrou que gostava de Marlon Brando, transformando-o em algo que é mais e
menos do que um ser humano:
um mito feito de luz e celulóide.
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