São Paulo, segunda-feira, 05 de julho de 2004

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DANÇA

Fundada em 1953, companhia do coreógrafo norte-americano mostra duas peças no Municipal a partir de amanhã

SP revê a nova ordem de Cunningham

Divulgação
Cena de "Sounddance", uma das coreografias da turnê, com cenário de Mark Lancaster e música eletrônica de David Tudor


INÊS BOGÉA
ENVIADA ESPECIAL A PORTO ALEGRE

Precisão e concretude, complexidade e apuro, rigor e liberdade marcam a obra do coreógrafo norte-americano Merce Cunningham. Dança, cenário, luz, figurino e música são, como ele mesmo esclarece, "elementos independentes" de uma mesma cena; reunidos, criam uma combinação que "nenhum dos artistas sozinhos poderia imaginar".
Num palco recortado pela luz, bailarinos desafiam as possibilidades do movimento. O cenário, como risco de luz na frente da cena, logo se transforma num conjunto de figuras animadas a partir de pontos do corpo no espaço. A imagem inconfundível definia o início desta temporada da Merce Cunningham Dance Company, em Porto Alegre, na última sexta-feira. O mesmo programa estréia amanhã em São Paulo e segue depois para o Rio.
Fundada em 1953 -tendo John Cage (1908-92), seu parceiro de vida, como diretor musical-, a companhia alterou o cenário da dança com transformações radicais. Vários importantes artistas plásticos, como Robert Rauschenberg, Jasper Johns, Andy Warhol e Roy Liechtenstein, atuaram como colaboradores, em maior ou menor grau. Recebido com estranhamento e protestos, o grupo foi se tornando uma referência mundial. O segredo, segundo o próprio Cunningham, é simplesmente "continuar".

Alta tecnologia
Desta vez, Cunningham mostra duas coreografias: "Sounddance" (1975) e "Biped" (1999). "Biped", que abre a noite, celebra o que se pode descrever como uma humanidade elementar. As nuances de dinâmica, as sombras e as relações criadas entre os bailarinos, a luz e as imagens humanas transformadas ao mesmo tempo extasiam e nos levam de volta à concretude.
A alta tecnologia (um programa computadorizado de "captação de imagens" da dança) empregada pelos artistas Paul Kaiser and Shelley Eshkar para criar o cenário, assim como a luz de Aaron Copp, circunda os bailarinos com raias, linhas, pontilhados, formas geométricas, espaços e barras virtuais, além dos próprios corpos digitais (recriados a partir do próprio corpo em movimento) que atravessam o palco em diversas direções, tamanhos e tempos. Tempos, aliás, quase sempre mais acelerados que a dança da cena. Intermitentemente os dançarinos são sombreados pelos esboços animados.
Em contraponto com as projeções, emergindo e desaparecendo da escuridão do palco, os 13 dançarinos, em suas malhas brilhantes azuis e prateadas, desempenham movimentos em que cada pequena parte do corpo é vista independentemente, e ao mesmo tempo conectada em inusitadas articulações.
A peça começa com o palco banhado de luz azul, onde surge o primeiro dançarino, que inicia seu solo e retorna ao fundo negro, como se fundido no infinito, quase ao mesmo tempo em que aparece de um outro ponto outro dançarino. Depois de uma série de solos, têm lugar os grandes grupos. Corpos são sugados para o fundo, mas estão constantemente voltando, seja pelas laterais seja desse sugestivo "infinito". Pequenos duos evocam o reflexo de um corpo no outro e compõem uma nova geometria no espaço: o que é corporal e seu contrário marcam a dança, seja nos bailarinos reais, seja nos virtuais.
A música eletroacústica do compositor inglês Gavin Bryars explora a potência expansiva dos tempos, em profundos tons eletrônicos produzidos na base sonora por trás da música ao vivo.
Já em "Sounddance", os bailarinos, que também surgem do fundo do palco, de uma cortina dourada drapeada (no cenário de Mark Lancaster) vão em direção ao estonteante cataclisma da música eletrônica de David Tudor ("Toneburst"). Sons de máquinas contrapostos aos da natureza, ruídos e notas definidas: tudo é material da trilha musical.
Vanguardista há seis décadas, Cunningham lida com o movimento, o ritmo e as direções criando uma nova ordem. Se nas pernas há movimentos reconhecíveis da dança clássica, sua combinação, assim como as torsões do tronco, as variadas direções dos braços e os giros da cabeça não deixam dúvida das inovadoras possibilidades imaginadas pelo coreógrafo.
Em "Sounddance", os corpos se entrelaçam e se dobram, decompõem e recompõem, em cenários humanos que se tornam também figuras de sentido. Figuras acentuadas pelos figurinos -malhas douradas na parte do tronco e azul nas pernas-, que criam a sensação dos corpos se fundirem parcialmente à cortina.
Aqui, como sempre, a dança exige controle e precisão, mas guarda uma espontaneidade mais solta do que em "Biped". Sua técnica envolve muita complexidade, para que se alcancem as linhas, a velocidade, a dinâmica e o equilíbrio necessários. Em ambas as peças, não há trama aparente, assim como não há limites: apenas os corpos, em sua realidade, e nossa infinita multiplicidade.


A jornalista Inês Bogéa viajou a convite da Petrobras

MERCE CUNNINGHAM DANCE COMPANY. Onde: Teatro Municipal de São Paulo (pça. Ramos de Azevedo, tel. 223 8698). Quando: dias 6 e 7/7, às 20h30. Onde: Teatro Municipal do Rio de Janeiro (pça. Floriano, tel. 2205 6672). Quando: dia 9/7, às 21h, e 11/7, às 19h30. Quanto: de R$ 30 a R$ 150.


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