São Paulo, sábado, 05 de julho de 2008

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Crítica/"O Pedante na Cozinha"

Barnes celebra amadorismo culinário

A partir de aventuras na cozinha, autor defende que palavras de uma receita devem ser tão importantes quanto as de um romance

CARLOS ALBERTO DÓRIA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Um irresistível "desejo de obedecer" é base da dominação burocrática que preside o mundo moderno. Mas o leitor, que conhece o poder dos guichês, talvez não tenha atentado para esse mesmo desejo quando se infiltra na cozinha. "O Pedante na Cozinha", de Julian Barnes, vem nos mostrar essa coisa sibilina e o colapso da cultura culinária baseada em receitas.
Em geral, temos a péssima idéia de abrir um livro de receitas e ir direto naquela que nos interessa. Não raro, com a mesma disciplina de Julian Barnes: "Obedeço às temperaturas e ao tempo de cozimento indicados nos livros de culinária. Confio nos instrumentos muito mais do que em mim [...]. A única liberdade que tomo com as receitas é aumentar a quantidade de alguns ingredientes". Ora, é esse misto de ansiedade e obediência o caminho do erro.
Se o leitor se detiver no prefácio do livro de Paul Bocuse ("La cuisine du marché", 1976) encontrará a incrível afirmação do grande chef: "A única coisa que se pode seguir ao pé da letra, num livro de culinária, talvez seja o tempo de cozimento. Mesmo assim, tenho minhas dúvidas. É possível ter um forno que alcance 230ºC, mas é mais provável que não passe dos 180ºC."
"Por que um livro de receitas deveria ser menos preciso que um manual de cirurgia? Por que as palavras de uma receita devem ser menos importantes que as palavras de um romance?", pergunta o expoente da literatura britânica, que começou a vida como lexicógrafo do dicionário Oxford e agora faz sua incursão pela cozinha.
Para ele, um autor razoável de livros de culinária deveria ter "poderes precisos de descrição" em substituição à velha transmissão oral e matrilinear, já que, escrita, a receita se torna patriarcal. Na outra ponta do drama Barnes vê o artesão da "cuisine d'instinct", cujos desastres nem precisa relatar.

Escravo das receitas
O pedante é o escravo das receitas, amarrado à rocha do seu pedantismo porque, inocentemente, quer fazer um bom prato. Mas ele jamais saberá decidir o que é um "punhado", uma "pitada" ou "borrifo", uma cebola "média". Seu abandono é digno de piedade.
Para ele, alguns conselhos: nunca compre livros cheios de fotos; evite os abrangentes demais; jamais compre os de receitas do chef; resista às antologias; evite os famosos do passado, especialmente as edições fac-similares; expulse da estante a Larousse. Mas há os bons de verdade, como os do River Café, o "Vegetable Book" de Jane Grigson ou os de Elizabeth David. E tenha o seu próprio livro de receitas: um caderno onde cole as de jornais e revistas, testadas ao menos duas vezes!
"O Pedante na Cozinha" é uma crítica hilária, bem escrita, dessa estante que todos temos em casa e achamos de efeitos mais "práticos" sobre a vida do que aquela, menos consultada, onde se amontoam Flaubert, Joyce, Machado de Assis e outros, metaforicamente destinados a alimentar o espírito. Apesar de que, como diz Barnes, citando Joseph Conrad, "a influência íntima de uma cozinha conscienciosa promove a serenidade do espírito".
É uma crítica especialmente engraçada se, desprezando a advertência de Bocuse, levamos essa literatura demasiado a sério, pois, como diz Barnes, quem não sabe cozinhar está condenado a lavar a louça. Por isso é obrigatória até para quem enxuga a louça, pois pode lê-lo enquanto o pedante prepara o desastre.


CARLOS ALBERTO DÓRIA é sociólogo e autor de "Estrelas no Céu da Boca: Escritos sobre Culinária e Gastronomia" (Senac-SP, 2006)

O PEDANTE NA COZINHA
Autor:
Julian Barnes
Tradução: Jussara Simões
Editora: Rocco
Quanto: R$ 24,50 (144 págs.)
Avaliação: ótimo


Texto Anterior: Crítica: Sedaris é boa distração, mas falta ironia
Próximo Texto: Trecho
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.