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Crítica/"O Pedante na Cozinha"
Barnes celebra amadorismo culinário
A partir de aventuras na cozinha, autor defende que palavras de uma receita devem ser tão importantes quanto as de um romance
CARLOS ALBERTO DÓRIA
ESPECIAL PARA A FOLHA
Um irresistível "desejo
de obedecer" é base da
dominação burocrática que preside o mundo moderno. Mas o leitor, que conhece o
poder dos guichês, talvez não
tenha atentado para esse mesmo desejo quando se infiltra na
cozinha. "O Pedante na Cozinha", de Julian Barnes, vem
nos mostrar essa coisa sibilina
e o colapso da cultura culinária
baseada em receitas.
Em geral, temos a péssima
idéia de abrir um livro de receitas e ir direto naquela que nos
interessa. Não raro, com a mesma disciplina de Julian Barnes:
"Obedeço às temperaturas e ao
tempo de cozimento indicados
nos livros de culinária. Confio
nos instrumentos muito mais
do que em mim [...]. A única liberdade que tomo com as receitas é aumentar a quantidade
de alguns ingredientes". Ora, é
esse misto de ansiedade e obediência o caminho do erro.
Se o leitor se detiver no prefácio do livro de Paul Bocuse
("La cuisine du marché", 1976)
encontrará a incrível afirmação
do grande chef: "A única coisa
que se pode seguir ao pé da letra, num livro de culinária, talvez seja o tempo de cozimento.
Mesmo assim, tenho minhas
dúvidas. É possível ter um forno que alcance 230ºC, mas é
mais provável que não passe
dos 180ºC."
"Por que um livro de receitas
deveria ser menos preciso que
um manual de cirurgia? Por
que as palavras de uma receita
devem ser menos importantes
que as palavras de um romance?", pergunta o expoente da literatura britânica, que começou a vida como lexicógrafo do dicionário Oxford e agora faz
sua incursão pela cozinha.
Para ele, um autor razoável
de livros de culinária deveria
ter "poderes precisos de descrição" em substituição à velha
transmissão oral e matrilinear,
já que, escrita, a receita se torna
patriarcal. Na outra ponta do
drama Barnes vê o artesão da
"cuisine d'instinct", cujos desastres nem precisa relatar.
Escravo das receitas
O pedante é o escravo das receitas, amarrado à rocha do seu
pedantismo porque, inocentemente, quer fazer um bom prato. Mas ele jamais saberá decidir o que é um "punhado", uma
"pitada" ou "borrifo", uma cebola "média". Seu abandono é
digno de piedade.
Para ele, alguns conselhos:
nunca compre livros cheios de
fotos; evite os abrangentes demais; jamais compre os de receitas do chef; resista às antologias; evite os famosos do passado, especialmente as edições
fac-similares; expulse da estante a Larousse.
Mas há os bons de verdade,
como os do River Café, o "Vegetable Book" de Jane Grigson ou
os de Elizabeth David. E tenha
o seu próprio livro de receitas:
um caderno onde cole as de jornais e revistas, testadas ao menos duas vezes!
"O Pedante na Cozinha" é
uma crítica hilária, bem escrita,
dessa estante que todos temos
em casa e achamos de efeitos
mais "práticos" sobre a vida do
que aquela, menos consultada,
onde se amontoam Flaubert,
Joyce, Machado de Assis e outros, metaforicamente destinados a alimentar o espírito.
Apesar de que, como diz Barnes, citando Joseph Conrad, "a
influência íntima de uma cozinha conscienciosa promove a
serenidade do espírito".
É uma crítica especialmente
engraçada se, desprezando a
advertência de Bocuse, levamos essa literatura demasiado
a sério, pois, como diz Barnes,
quem não sabe cozinhar está
condenado a lavar a louça. Por
isso é obrigatória até para
quem enxuga a louça, pois pode
lê-lo enquanto o pedante prepara o desastre.
CARLOS ALBERTO DÓRIA é sociólogo e autor
de "Estrelas no Céu da Boca: Escritos sobre Culinária e Gastronomia" (Senac-SP, 2006)
O PEDANTE NA COZINHA
Autor: Julian Barnes
Tradução: Jussara Simões
Editora: Rocco
Quanto: R$ 24,50 (144 págs.)
Avaliação: ótimo
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