São Paulo, sábado, 05 de julho de 2008

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

crítica

Sedaris é boa distração, mas falta ironia

GUSTAVO PIQUEIRA
ESPECIAL PARA A FOLHA

O menino que sonha em cantar como Billie Holiday, para decepção do professor de guitarra. O anfitrião buscando, sem êxito, evitar roteiros clichês de turismo em Paris e Nova York. O professor de redação criativa em sucessivas falcatruas para enrolar seus alunos.
Todas as 27 crônicas que compõem "Eu Falar Bonito um Dia" são narrativas bem escritas, sem afetações de virtuose. Divertidas, trazem um humor inteligente. Por vezes, até memorável. Como quando Sedaris discorre sobre culinária contemporânea ("se cozinhar é uma arte, acho que estamos na fase do dadá"), ou nas incursões do artista conceitual que compõe a crônica "Doze Momentos na Vida do Artista".
Verdade que a parte dois do livro, dedicada aos percalços do narrador na França, é um pouco repetitiva. Verdade também que, às vezes, Sedaris se rende ao truque fácil de incrementar demais seu cotidiano. Não basta trabalhar numa empresa de mudanças. É preciso que sua equipe seja formada por um comunista, um assassino e um esquizofrênico. Senão o leitor cansa, né?
A comparação com Woody Allen, tão freqüente por conta do uso de si próprio como objeto de sarcasmo (e também para abocanhar os muitos fãs do nova-iorquino, imagino) é justa. Desde que, claro, descartemos os mais ambiciosos (e melhores) filmes deste último. Por quê? Porque a tão propagada "ironia arrasadora" da obra de Sedaris, de fato, não existe.
Não, não existe. Caso contrário, como explicar a constrangedora visão romântica de pobres pescadores em "Engenharia Genética"? Ou o paralelo reducionista entre a infância "medíocre" do narrador na Carolina do Norte e as aventuras africanas de seu namorado, filho de diplomata, em "Recordando minha Infância no Continente da África"?
A própria crítica à culinária contemporânea, elogiada há pouco, acaba por restringir sua conclusão ao rasteiro vem-tão-pouco-no-prato-que-eu-preciso-de-um-sanduíche-depois. Sem falar, claro, na crônica que começa com "lá no vaso, estava o cocô mais descomunal que eu já vira na vida". Até onde sei, Woody Allen não dirigiu "Quem Vai Ficar com Mary?". Dirigiu?
Se Proust estava certo (em geral está) e "todo leitor, quando lê, é leitor de si mesmo", um livro que se apresente como de ironia arrasadora deveria levar a uma das duas inevitáveis reações: na pior (e mais freqüente) das hipóteses, a tradicional negação. "Que autor arrogante.
Não sou nada disso." Na melhor, "é, pensando bem, sou um tanto ridículo". Uma das duas. Nunca a "é, pensando bem, o americano do meio-oeste é um tanto ridículo".
Nunca.
Sedaris bate bem? Bastante bem. Com inegável precisão, graça e estilo. Só não se engane: bate, salvo raras exceções, em cachorro morto. Morto, morto. Seu humor é confortável. Escarnece do que já é considerado ridículo pelo senso comum.
Mas não pense que quero fazê-lo desistir. Não, não.
Se você busca, num livro, "essa coisa estúpida e sempre eficaz que se chama distrair", como afirmava um antigo autor cheio de -este sim- arrasadora ironia, "Eu
Falar Bonito um Dia" é ótima pedida.


GUSTAVO PIQUEIRA é autor do "Manual do Paulistano Moderno e Descolado" (WMF/ Martins Fontes) e "São Paulo, Cidade Limpa" (Rex Livros), entre outros

EU FALAR BONITO UM DIA
Autor:
David Sedaris
Tradução: Bruno Gomide
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 43 (248 págs.)
Avaliação: bom


Texto Anterior: Trecho
Próximo Texto: Crítica/"O Pedante na Cozinha": Barnes celebra amadorismo culinário
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.