São Paulo, Quinta-feira, 05 de Agosto de 1999
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"Vi estruturas retorcidas. E uma montanha de cadáveres"

da Reportagem Local

Takashi Morita é um homem de sorte.
Sobreviveu a uma bomba atômica que matou 140 mil pessoas numa cidade com 340 mil habitantes.
Casou-se com outra sobrevivente e teve dois filhos perfeitos, numa época em que defeitos congênitos em bebês eram comuns.
Aos 75 anos, tem saúde invejável: trabalha de manhã e de tarde no caixa da mercearia de sua família, na zona sul de São Paulo. De noite, dá uma olhada no restaurante do qual é sócio, no bairro da Conceição, onde sempre toma uma cerveja com a refeição.
Mas Morita também foi vítima de um azar. E dos grandes: em 1945, era policial militar em Tóquio. Pediu remanejamento para Hiroshima e chegou lá no dia 1º de agosto, cinco dias antes da bomba.
Ao mudar de cidade, Morita, então com 21 anos, buscava dois objetivos: distância dos bombardeios regulares que Tóquio sofria e proximidade de seus pais, que moravam em uma pequena cidade próxima de Hiroshima.
No caminho para o novo quartel, o policial tinha visto diversas cidades queimando e, ao chegar, se espantou com o bom estado de Hiroshima. "Acho que eles estavam guardando para a bomba atômica", diz hoje.

8h15, 6 de agosto de 1945
Na noite do dia 5, nem Morita nem os 200 policiais que serviam no quartel dormiram bem. "Aviões voaram toda a noite. Achamos que viria bombardeio."
Seus superiores logo tomaram as providências: mandaram um grupo de dez polícias cavar abrigos anti-aéreos num bairro próximo ao centro. Às 8h, Morita já havia tomado café da manhã e estava na rua com seus nove colegas.
Pegaram um bonde e desceram no terceiro ponto. "Íamos em fila indiana quando surgiu uma claridade muito grande pelas nossas costas. Não houve som nenhum, não sentimos nada e fomos arremessados ao chão."
Eram 8h15, e a bomba havia explodido a 580 metros de altura, sobre o centro da cidade. Apelidada de "Little Boy", tinha três metros e levava em sua barriga 60 quilos de urânio enriquecido. A explosão matou 140 mil pessoas, 10% delas por radiação.
Algo que Morita jamais tinha ouvido falar até aqueles dias. Assim que se recobrou do tombo, recolocou um colega atordoado na fila indiana e seguiram caminho. Morita chegou a pensar que a explosão era num depósito de fogos de artifício que havia ali.
Pouco depois, percebeu que o céu estava escuro, quase noturno. As casas estavam aos pedaços e começavam a queimar. Morita e seus colegas tiraram uma mulher e um bebê do meio de escombros.
Em seguida, começou a chuva negra, com partículas que a explosão libera. "Pensamos que era óleo despejado pelos americanos para nos queimar."
Lá pelo meio-dia, o policial foi ao centro da cidade, tentar verificar o que havia ocorrido. "Vi prédios queimados, estruturas retorcidas, pedaços de colunas. E uma montanha de cadáveres."
Dois dias depois, Morita foi hospitalizado para tratar de suas queimaduras na nuca. No dia seguinte, uma segunda bomba, esta apelidada "Fat Man", com oito quilos de plutônio, explodiu em Nagasaki.
Ainda estava no hospital quando o Japão se rendeu, dias depois. Voltou para a casa dos pais, virou relojoeiro, casou-se no ano seguinte e teve dois filhos.
Acabou por aqui em 1956, quando um japonês que vivia no Brasil apareceu em sua loja. "Ele tinha ido ao Japão porque não acreditava que tínhamos perdido a guerra. Quis ver com os próprios olhos."
Convencido das oportunidades em terras brasileiras, Morita veio, mas por anos escondeu ser sobrevivente da bomba. "Esperei meus filhos se casarem", explica. "Há muito preconceito."
Em 84, criou sua Associação das Vítimas de Bomba Atômica no Brasil. Na época, conhecia uns 20 sobreviventes. Conseguiu que três jornais japoneses de São Paulo publicassem matérias sobre a associação. Meses depois, chegavam cartas até Bolívia. Em 1988, estavam cadastradas 188 pessoas. Hoje, restam cerca de 160. (IF)


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