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LITERATURA
Obra desfaz equívocos de "Cidadão Kane"
JOSÉ GERALDO COUTO
especial para a Folha
"Cidadão Ka
ne" (1941), de
Orson Welles, o
filme mais cele
brado da histó
ria do cinema,
motivou -e
continua moti
vando- centenas de livros, teses e
ensaios pelo mundo afora.
Mas talvez nenhum deles seja tão
completo e minucioso quanto
"Cidadão Kane: O Making Of",
do norte-americano Robert L.
Carringer, que a Civilização Brasi
leira lança agora no Brasil.
Sua primeira versão foi publica
da em setembro de 1985, um mês
antes da morte do cineasta, que
chegou a ler e discutir com o autor
alguns dos capítulos. A edição bra
sileira se baseia na versão revista e
atualizada por Carringer, lançada
nos EUA em 1996.
O maior mérito é desfazer dois
equívocos opostos a respeito de
"Kane": o de acreditar que a ge
nialidade de Orson Welles merece
todo o crédito pela grandeza do fil
me; e o de achar que não merece
nenhum, já que as qualidades da
obra se devem ao trabalho de um
brilhante time de colaboradores.
Baseado numa exaustiva pesqui
sa, que incluiu um mergulho nos
arquivos da produtora RKO e en
trevistas com os remanescentes da
equipe de realização do filme, Car
ringer mostra que o segredo de
"Cidadão Kane" é justamente a
rara e feliz sintonia entre as idéias
de um grande criador e o talento
de um punhado de especialistas
para colocá-las em prática.
Não que o filme tenha surgido
inteiro e redondo, sem tropeços,
como pode parecer ao espectador
fascinado com sua perfeição.
Como mostra Carringer, o resul
tado final foi fruto de um percurso
extremamente acidentado, em que
entraram restrições de orçamento,
experimentos frustrados e uma
boa dose de improvisação.
No livro há, por exemplo, fotos
de cenas rodadas e não incluídas
na montagem final, "sketches"
de cenários não realizados (em ge
ral por falta de recursos), "story
boards" de sequências deixadas
de lado etc.
"Cidadão Kane", em suma, po
deria ser muito diferente do que é.
Mais que isso: nas condições que o
cercaram, o fato de ter sido realiza
do já é quase um milagre.
Mudança de rota
Para começar, "Cidadão Kane"
não era o filme com que Orson
Welles -então um jovem talento
do teatro e do rádio- queria es
trear no cinema.
"Kane", cujo título provisório
era "American", foi sacado do
bolso do colete como uma espécie
de projeto-tampão que o diretor
deveria realizar enquanto tentava
viabilizar aquela que era de fato
sua menina dos olhos: a versão ci
nematográfica de "O Coração das
Trevas", de Joseph Conrad.
O primeiro capítulo do livro tra
ta dessa adaptação frustrada, para
a qual chegaram a ser construídas
maquetes e alguns cenários.
Depois disso, Carringer recons
titui em minúcias as dificuldades
de Welles em realizar "Cidadão
Kane" do jeito que queria.
A situação do cineasta estreante
era ambígua: por um lado, recebia
da RKO uma autonomia criativa
sem precedentes e uma equipe téc
nica de primeira; por outro, seu
orçamento era apertado para um
projeto daquela envergadura e ha
via uma hostilidade latente na co
munidade hollywoodiana, que o
via como um intruso e torcia pelo
seu fracasso.
Ao acompanhar cada passo da
construção do filme -da elabora
ção do roteiro ao lançamento-,
Carringer desfaz, categoricamen
te, o mito de que Welles era um
esbanjador incorrigível.
Pelo contrário: muitas das op
ções estéticas mais corajosas e ori
ginais do filme são, na verdade, so
luções criativas para problemas de
restrição de orçamento.
Um exemplo: o salão nobre de
Xanadu, o castelo de Kane, é ilu
minado de modo expressionista e
seletivo, com grandes áreas de
sombra -o que serve não só para
sublinhar dramaticamente o tene
broso declínio do protagonista,
mas também para ocultar a relati
va pobreza do mobiliário, bem co
mo a pintura em "trompe-lóeil"
de detalhes do set.
Carringer mostra como, desde a
escrita do roteiro, com Herman
Mankiewicz, até a montagem final
(com Robert Wise), Welles parti
cipou ativamente da criação de ca
da detalhe do filme.
Pela primeira vez numa grande
produção de Hollywood, havia
uma concepção integrada de todos
os aspectos narrativos, visuais e
sonoros da obra.
Ainda na fase de pré-produção,
Welles se reunia pela manhã com
Mankiewicz, para aperfeiçoar o
roteiro, à tarde com os atores, para
ensaiá-los, e à noite com o diretor
de arte Perry Ferguson e o diretor
de fotografia Greg Toland, para
definir a "cara" de cada cena.
"Cidadão Kane", mostra-nos
Carringer, é o que o cinema pode
produzir quando a indústria se co
loca, ao menos por um momento,
a serviço da arte.
Livro: Cidadão Kane: O Making Of
Autor: Robert L. Carringer
Tradução: Ana Luiza Dantas Borges
Editora: Civilização Brasileira
Preço: R$ 32 (224 págs.)
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