São Paulo, sexta, 5 de setembro de 1997.



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LITERATURA
Obra desfaz equívocos de "Cidadão Kane"

JOSÉ GERALDO COUTO
especial para a Folha

"Cidadão Ka ne" (1941), de Orson Welles, o filme mais cele brado da histó ria do cinema, motivou -e continua moti vando- centenas de livros, teses e ensaios pelo mundo afora.
Mas talvez nenhum deles seja tão completo e minucioso quanto "Cidadão Kane: O Making Of", do norte-americano Robert L. Carringer, que a Civilização Brasi leira lança agora no Brasil.
Sua primeira versão foi publica da em setembro de 1985, um mês antes da morte do cineasta, que chegou a ler e discutir com o autor alguns dos capítulos. A edição bra sileira se baseia na versão revista e atualizada por Carringer, lançada nos EUA em 1996.
O maior mérito é desfazer dois equívocos opostos a respeito de "Kane": o de acreditar que a ge nialidade de Orson Welles merece todo o crédito pela grandeza do fil me; e o de achar que não merece nenhum, já que as qualidades da obra se devem ao trabalho de um brilhante time de colaboradores.
Baseado numa exaustiva pesqui sa, que incluiu um mergulho nos arquivos da produtora RKO e en trevistas com os remanescentes da equipe de realização do filme, Car ringer mostra que o segredo de "Cidadão Kane" é justamente a rara e feliz sintonia entre as idéias de um grande criador e o talento de um punhado de especialistas para colocá-las em prática.
Não que o filme tenha surgido inteiro e redondo, sem tropeços, como pode parecer ao espectador fascinado com sua perfeição.
Como mostra Carringer, o resul tado final foi fruto de um percurso extremamente acidentado, em que entraram restrições de orçamento, experimentos frustrados e uma boa dose de improvisação.
No livro há, por exemplo, fotos de cenas rodadas e não incluídas na montagem final, "sketches" de cenários não realizados (em ge ral por falta de recursos), "story boards" de sequências deixadas de lado etc.
"Cidadão Kane", em suma, po deria ser muito diferente do que é. Mais que isso: nas condições que o cercaram, o fato de ter sido realiza do já é quase um milagre.
Mudança de rota
Para começar, "Cidadão Kane" não era o filme com que Orson Welles -então um jovem talento do teatro e do rádio- queria es trear no cinema.
"Kane", cujo título provisório era "American", foi sacado do bolso do colete como uma espécie de projeto-tampão que o diretor deveria realizar enquanto tentava viabilizar aquela que era de fato sua menina dos olhos: a versão ci nematográfica de "O Coração das Trevas", de Joseph Conrad.
O primeiro capítulo do livro tra ta dessa adaptação frustrada, para a qual chegaram a ser construídas maquetes e alguns cenários.
Depois disso, Carringer recons titui em minúcias as dificuldades de Welles em realizar "Cidadão Kane" do jeito que queria.
A situação do cineasta estreante era ambígua: por um lado, recebia da RKO uma autonomia criativa sem precedentes e uma equipe téc nica de primeira; por outro, seu orçamento era apertado para um projeto daquela envergadura e ha via uma hostilidade latente na co munidade hollywoodiana, que o via como um intruso e torcia pelo seu fracasso.
Ao acompanhar cada passo da construção do filme -da elabora ção do roteiro ao lançamento-, Carringer desfaz, categoricamen te, o mito de que Welles era um esbanjador incorrigível.
Pelo contrário: muitas das op ções estéticas mais corajosas e ori ginais do filme são, na verdade, so luções criativas para problemas de restrição de orçamento.
Um exemplo: o salão nobre de Xanadu, o castelo de Kane, é ilu minado de modo expressionista e seletivo, com grandes áreas de sombra -o que serve não só para sublinhar dramaticamente o tene broso declínio do protagonista, mas também para ocultar a relati va pobreza do mobiliário, bem co mo a pintura em "trompe-lóeil" de detalhes do set.
Carringer mostra como, desde a escrita do roteiro, com Herman Mankiewicz, até a montagem final (com Robert Wise), Welles parti cipou ativamente da criação de ca da detalhe do filme.
Pela primeira vez numa grande produção de Hollywood, havia uma concepção integrada de todos os aspectos narrativos, visuais e sonoros da obra.
Ainda na fase de pré-produção, Welles se reunia pela manhã com Mankiewicz, para aperfeiçoar o roteiro, à tarde com os atores, para ensaiá-los, e à noite com o diretor de arte Perry Ferguson e o diretor de fotografia Greg Toland, para definir a "cara" de cada cena.
"Cidadão Kane", mostra-nos Carringer, é o que o cinema pode produzir quando a indústria se co loca, ao menos por um momento, a serviço da arte.

Livro: Cidadão Kane: O Making Of Autor: Robert L. Carringer Tradução: Ana Luiza Dantas Borges Editora: Civilização Brasileira Preço: R$ 32 (224 págs.)


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