São Paulo, sexta, 5 de setembro de 1997.



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Plácido 'Sonho Azul' revisa horrores chineses

LÚCIA NAGIB
da Equipe de Articulistas

Não espere encontrar em "Sonho Azul" o mesmo aspecto espetacular que constitui o atrativo do grande público em outros filmes chineses recentes. Nada de beldades à Gong Li, nada de requintadas cenas de ópera ou lanternas vermelhas, como nas obras de Zhang Yimou e Chen Kaige.
O diretor de "Sonho Azul", Tian Zhuangzhuang, tão célebre quanto esses seus colegas da chamada "quinta geração" chinesa, prefere a sobriedade e a modéstia, embora com pretensões não menos grandiosas.
O cenário pobre, os rostos lavados, a quase ausência de música e a sistemática falta de dramatização mesmo das cenas violentas não escondem o fôlego alentado do diretor.
Tanto quanto seus conterrâneos, Zhuangzhuang quer contar a história da China pós-Mao, com todos os seus detalhes políticos e, sobretudo, todos os seus horrores.
O início dispersivo, que custa a revelar o verdadeiro foco da história, não passa de uma armadilha para envolver o espectador nos tentáculos invisíveis do sistema chinês, que contaminam os menores atos da população.
É por meio da saga de uma família simples, em tudo semelhante aos seus vizinhos e comunidade, que o diretor narra sua visão da história recente do país.
Fecundidade de histórias
O que logo se percebe é que Zhuangzhuang, a exemplo de seus contemporâneos, está transbordando de histórias para contar -o que é talvez o maior trunfo do cinema chinês, que passou como um trator por cima do cinema não-narrativo e metalinguístico europeu.
Em mais de duas horas de filme, "Sonho Azul" não esgota nem mesmo a infância de seu protagonista, Tietou, que rememora sua triste história de menino em três fases: com o pai, o tio e o padrasto.
Uma estrutura eminentemente patriarcal que, sem desvalorizar o papel da mãe -personagem fundamental para o menino-, revela que os homens eram (e devem ser até hoje) o alvo principal da fúria repressiva do comunismo.
A narrativa tem início em 1953, ano da morte de Stálin e do casamento dos pais de Tietou.
Portanto, sua primeira infância é marcada pelo que se chamou de "movimento de retificação", em meados dos anos 50, quando a população era incitada a declarar suas críticas ao regime.
Tratava-se na verdade de uma armadilha, pois os que ousavam se abrir (dentre estes o pai de Tietou) eram imediatamente identificados como anti-revolucionários e enviados para campos de trabalhos forçados.
Pipa
A segunda parte do filme se refere ao "grande salto para frente", quando toda a população, inclusive mulheres com filhos pequenos, teve que trabalhar no campo, em péssimas condições, para levantar a economia do país.
Nesse esforço coletivo, o tio de Tietou, espécie de substituto paterno, torna-se vítima de um mal incurável.
Na última parte do longa, vemos a caça implacável aos "direitistas", isto é, aos intelectuais, como o padrasto de Tietou, que começava a lhe oferecer um certo conforto caseiro.
Assim, o sonho infantil do garoto, que vê se esfacelarem seus modelos masculinos, não consegue ultrapassar uma pipa azul rasgada.
Uma metáfora kitsch, talvez, mas dentro de um filme sério, enxuto, cruel em sua placidez e destruidor em sua simplicidade.
Não admira que até hoje seja proibido na China.

Filme: Sonho Azul Produção: China, 1993 Direção: Tian Zhuangzhuang Com: Yi Tian, Zhang Wenyao, Chen Xiamoman, Lu Liping Quando: a partir de hoje, no Cinearte 1


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