São Paulo, sábado, 5 de setembro de 1998

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Diretor quer criar uma "Cacilda do futuro"

da Reportagem Local

Em seu apartamento em São Paulo, o autor e diretor de "Cacilda!", José Celso Martinez Corrêa, toma um gole como se o copo não contivesse Gatorade de uva, mas o sangue do velho teatro, do velho homem, das idéias que prevalecem na virada do milênio.
Quem pensa que sua nova produção não será uma reconstrução linear da vida de Cacilda Becker acertou. Zé Celso está ligado no porvir:
"A possibilidade futura do teatro está em que novamente o ser humano se apaixone pela possibilidade mais do que humana que ele tem, quando superar uma idéia de homem que é a que existiu durante estes 2.000 anos. Um homem que está à espera de Godot." (Cacilda teve o aneurisma quando representava "Esperando Godot" , do irlandês Samuel Beckett.)
"O Carlitos, esse homem do século 20, é quem essa peça quer estraçalhar. Nessa peça, Godot vai chegar", anuncia.
E continua, ao transitar para as dificuldades de dinheiro, de elenco e de produção que afetam todas as produções do Oficina nesta década:
"Não temos nada, mas vamos fazendo. Não vamos esperar Godot. Não importa. Depois de três meses de ensaio, há uma massa de energia que ainda não explodiu e que é necessário explodir. Já conseguimos apaixonar as pessoas. É um luxo que nós estamos nos dando, que nos custa muito caro e que nós queremos dar também."
Em 1968, Cacilda Becker deu uma virada considerável em sua vida. A grande dama do Teatro Brasileiro de Comédia (TBC) e depois do Teatro Cacilda Becker (TCB) vivia uma crise, como diz Zé Celso:
"Ela tinha levado um susto com "Rei da Vela', com "Roda Viva', com 1968, os movimentos no mundo. Tanto que encenou "Isso Devia Ser Proibido', do Bráulio Pedroso, que é uma espécie de separação pública dela do Walmor Chagas. E também uma espécie de suicídio de classe, de suicídio de um tipo de teatro, feita de maneira elegantérrima, de grande luxo."
Houve o ataque a "Roda Viva" (integrantes do Comando de Caça aos Comunistas, o CCC, invadiram o teatro e espancaram atores), e Cacilda passou a militar na liderança dos artistas. Foi quando pronunciou a frase, muito importante porque vinha dela: "Meus teatros são todos os teatros". Ela assumiu inteiramente aquele teatro que emergia, o teatro dos coros orgiásticos.
Já estava acertado: se não tivesse entrado em coma, Cacilda Becker e seu teatro se fundiriam com o teatro Oficina e o coro de "Roda Viva" na produção de "A Gaivota", de Tchecov.
Zé Celso tornou-se amigo da atriz nessa época: "Em 68, Cacilda estava totalmente dentro de um movimento revolucionário, como um totem, uma líder, muito especial, porque ela realmente tinha um discurso político. Era uma espécie de Lênin, uma estrategista da arte. Não era à esquerda, à direita, nem ao centro, tinha uma prática ligada à arte teatral. Sua figura era queridíssima por todas as áreas. Daí vem o "Viva Cacilda Becker', do Caetano (em discurso no Festival Internacional da Canção, diante de vaias à sua música "É Proibido Proibir')".
Para o diretor e dramaturgo, a vida e a morte de Cacilda Becker encarnam um mito vivo, ideal para expressar sua visão das possibilidades do teatro dentro e fora da sala de espetáculos:
"A contribuição que o teatro dá à sociedade é a de um lugar onde aconteça a catarse do público, ligada à história vivida por nós todos nesse instante. Assim como vamos abordar a dramaturgia encenada por uma atriz, vamos tratar de criar uma Cacilda do futuro, filha desse movimento, criando a partir da semente deixada por ela".
Nada fácil, reconhece o diretor, para quem a peça será bem-sucedida se lograr uma espécie de saída do coma cultural que atinge o país, especialmente a juventude.
"Os jovens não estão na situação em que estavam há 30 anos. Eles sofreram uma repressão violenta. Para Cacilda Becker, essa repressão explodiu num aneurisma. Se eu não tivesse derrubado o velho teatro Oficina, teria morrido também. O entusiasmo que Cacilda tinha foi tolhido a ponto de ela se comprimir num palco para esperar Godot. Aquilo era violento demais. Naquela época, eu estava fazendo "Na Selva das Cidades' (Bertolt Brecht), querendo encontrar o chão do teatro. Foi ao abrir a pista do teatro que despachei meu aneurisma", diz.
Zé Celso se considera mal-interpretado quando seu teatro é tachado de messiânico. Ao contrário, ele diz criar espetáculos teatrais em que atores e platéia possam usufruir materialmente, e no instante presente, o furor e o desejo de mutação.
Sua aspiração é criar um estado dramático em que o cheiro e o gosto de estar presente sejam levados ao extremo: "Não há bicho mais teatral do que o cavalo. Quando entra em cena, hipnotiza. Queremos esse estado de cavalo, animal, que é pré-cultura, de antes de matarem o minotauro. Na realidade, a peça trabalha com a idéia de que Godot é gado, animal, e que se deve usufruir dele ao máximo. Nós temos esse poder animal de usufruir das coisas. Porque a experiência de vida concreta não é rotulável. Vive-se o mundo de maneira animal, mas há também um lado absolutamente desconhecido que é o mistério de tudo. Por preguiça você pode dar o nome de Deus a isso e arrumar alguém que o interprete, o delegado ou padre. O importante no teatro é colocar você a nu em contato com essa força desconhecida e não se prender a uma idéia de homem única, dominante, que é a idéia de Godot, o homem de chapéu-coco. A espécie humana é transumana e visa se superar".
Nelson Rodrigues escreveu em uma de suas crônicas que nas peças de Zé Celso, considerado por ele o maior diretor do teatro brasileiro, nenhum ator fala um "bom dia" que seja apenas um cumprimento. É preciso, dizia Rodrigues, que o espectador leve um soco nos tímpanos. Prepare seus ouvidos, portanto, para a estréia próxima de "Cacilda!". (MVS)



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