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Diretor quer criar uma "Cacilda do futuro"
da Reportagem Local
Em seu apartamento em São
Paulo, o autor e diretor de "Cacilda!", José Celso Martinez Corrêa,
toma um gole como se o copo não
contivesse Gatorade de uva, mas o
sangue do velho teatro, do velho
homem, das idéias que prevalecem
na virada do milênio.
Quem pensa que sua nova produção não será uma reconstrução
linear da vida de Cacilda Becker
acertou. Zé Celso está ligado no
porvir:
"A possibilidade futura do teatro
está em que novamente o ser humano se apaixone pela possibilidade mais do que humana que ele
tem, quando superar uma idéia de
homem que é a que existiu durante
estes 2.000 anos. Um homem que
está à espera de Godot." (Cacilda
teve o aneurisma quando representava "Esperando Godot" , do irlandês Samuel Beckett.)
"O Carlitos, esse homem do século 20, é quem essa peça quer estraçalhar. Nessa peça, Godot vai
chegar", anuncia.
E continua, ao transitar para as
dificuldades de dinheiro, de elenco
e de produção que afetam todas as
produções do Oficina nesta década:
"Não temos nada, mas vamos fazendo. Não vamos esperar Godot.
Não importa. Depois de três meses
de ensaio, há uma massa de energia que ainda não explodiu e que é
necessário explodir. Já conseguimos apaixonar as pessoas. É um
luxo que nós estamos nos dando,
que nos custa muito caro e que nós
queremos dar também."
Em 1968, Cacilda Becker deu
uma virada considerável em sua
vida. A grande dama do Teatro
Brasileiro de Comédia (TBC) e depois do Teatro Cacilda Becker
(TCB) vivia uma crise, como diz Zé
Celso:
"Ela tinha levado um susto com
"Rei da Vela', com "Roda Viva',
com 1968, os movimentos no mundo. Tanto que encenou "Isso Devia
Ser Proibido', do Bráulio Pedroso,
que é uma espécie de separação
pública dela do Walmor Chagas. E
também uma espécie de suicídio
de classe, de suicídio de um tipo de
teatro, feita de maneira elegantérrima, de grande luxo."
Houve o ataque a "Roda Viva"
(integrantes do Comando de Caça
aos Comunistas, o CCC, invadiram
o teatro e espancaram atores), e
Cacilda passou a militar na liderança dos artistas. Foi quando pronunciou a frase, muito importante
porque vinha dela: "Meus teatros
são todos os teatros". Ela assumiu
inteiramente aquele teatro que
emergia, o teatro dos coros orgiásticos.
Já estava acertado: se não tivesse
entrado em coma, Cacilda Becker e
seu teatro se fundiriam com o teatro Oficina e o coro de "Roda Viva"
na produção de "A Gaivota", de
Tchecov.
Zé Celso tornou-se amigo da
atriz nessa época: "Em 68, Cacilda
estava totalmente dentro de um
movimento revolucionário, como
um totem, uma líder, muito especial, porque ela realmente tinha
um discurso político. Era uma espécie de Lênin, uma estrategista da
arte. Não era à esquerda, à direita,
nem ao centro, tinha uma prática
ligada à arte teatral. Sua figura era
queridíssima por todas as áreas.
Daí vem o "Viva Cacilda Becker',
do Caetano (em discurso no Festival Internacional da Canção, diante de vaias à sua música "É Proibido
Proibir')".
Para o diretor e dramaturgo, a vida e a morte de Cacilda Becker encarnam um mito vivo, ideal para
expressar sua visão das possibilidades do teatro dentro e fora da sala de espetáculos:
"A contribuição que o teatro dá à
sociedade é a de um lugar onde
aconteça a catarse do público, ligada à história vivida por nós todos
nesse instante. Assim como vamos
abordar a dramaturgia encenada
por uma atriz, vamos tratar de
criar uma Cacilda do futuro, filha
desse movimento, criando a partir
da semente deixada por ela".
Nada fácil, reconhece o diretor,
para quem a peça será bem-sucedida se lograr uma espécie de saída
do coma cultural que atinge o país,
especialmente a juventude.
"Os jovens não estão na situação
em que estavam há 30 anos. Eles
sofreram uma repressão violenta.
Para Cacilda Becker, essa repressão explodiu num aneurisma. Se
eu não tivesse derrubado o velho
teatro Oficina, teria morrido também. O entusiasmo que Cacilda tinha foi tolhido a ponto de ela se
comprimir num palco para esperar Godot. Aquilo era violento demais. Naquela época, eu estava fazendo "Na Selva das Cidades' (Bertolt Brecht), querendo encontrar o
chão do teatro. Foi ao abrir a pista
do teatro que despachei meu aneurisma", diz.
Zé Celso se considera mal-interpretado quando seu teatro é tachado de messiânico. Ao contrário, ele
diz criar espetáculos teatrais em
que atores e platéia possam usufruir materialmente, e no instante
presente, o furor e o desejo de mutação.
Sua aspiração é criar um estado
dramático em que o cheiro e o gosto de estar presente sejam levados
ao extremo: "Não há bicho mais
teatral do que o cavalo. Quando
entra em cena, hipnotiza. Queremos esse estado de cavalo, animal,
que é pré-cultura, de antes de matarem o minotauro. Na realidade, a
peça trabalha com a idéia de que
Godot é gado, animal, e que se deve
usufruir dele ao máximo. Nós temos esse poder animal de usufruir
das coisas. Porque a experiência de
vida concreta não é rotulável. Vive-se o mundo de maneira animal,
mas há também um lado absolutamente desconhecido que é o mistério de tudo. Por preguiça você pode dar o nome de Deus a isso e arrumar alguém que o interprete, o
delegado ou padre. O importante
no teatro é colocar você a nu em
contato com essa força desconhecida e não se prender a uma idéia
de homem única, dominante, que
é a idéia de Godot, o homem de
chapéu-coco. A espécie humana é
transumana e visa se superar".
Nelson Rodrigues escreveu em
uma de suas crônicas que nas peças de Zé Celso, considerado por
ele o maior diretor do teatro brasileiro, nenhum ator fala um "bom
dia" que seja apenas um cumprimento. É preciso, dizia Rodrigues,
que o espectador leve um soco nos
tímpanos. Prepare seus ouvidos,
portanto, para a estréia próxima
de "Cacilda!".
(MVS)
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