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ARTIGO
Letra de música é ou não é, enfim, poesia?
NELSON ASCHER
ARTICULISTA DA FOLHA
Letra de música é poesia?
Entra ano, sai ano, a discussão se repete idêntica, inclusive na
ausência perpétua de um veredicto consensual. Pelo menos no
Brasil.
Faça-se essa pergunta ao mais
aberto e experimental dos literatos franceses, e sua resposta inevitável será um indignado "não":
nem sequer George Brassens faria
jus a um lugar na esfera mais rarefeita da "civilization française".
Um norte-americano chegaria à
mesma conclusão, mas por caminhos diferentes, pois no seu universo a poesia não deve pertencer
à esfera mercantil da qual a canção de consumo, ainda que composta por Woodie Guthrie ou Bob
Dylan, faz parte.
Quanto aos nossos vizinhos hispânicos, desde que a composição
seja de protesto, seu autor, Violeta
Parra ou Pablo Milanés, podem
ser chamados de poetas, sobretudo se, como Victor Jarra, foram
vítimas da repressão.
Em nosso país, são dois os campos que se opõem. De um lado,
vanguardistas, muito da universidade e a esquerda, em geral, dizem que aquilo que Caetano ou
Chico fazem é poesia; de outro,
escritores e críticos literária e poeticamente conservadores acham
essa idéia escandalosa.
O que ocorre é que a discussão
toda está mal posta, já que se trata,
antes de mais nada, de um problema de definições.
Dependendo de onde se coloquem os limites da poesia, as letras estarão dentro ou fora deles.
Ademais, o que no fundo move os
debatedores, a questão do status
ou da dignidade cultural, raramente vem à tona.
Quem afirma que letra é poesia
quer na verdade promovê-la a
uma posição que julga mais elevada. Seus opositores, que acreditam ainda mais intensamente em
tal hierarquia, preferem manter
separadas as águas, talvez para
não turvar a que brota nas fontes
do Parnaso.
O caso brasileiro se complica
não só devido às relações harmônicas mantidas desde, pelo menos, Vinicius de Moraes, entre
poetas, letristas e compositores,
como também porque é difícil
imaginar critérios esteticamente
honestos que não coloquem, durante o último meio século, a nata
da MPB acima do grosso da poesia contemporânea.
Mas, afinal, letra é ou não é poesia? A única resposta razoável é:
depende. De como, onde, quando
e por quê. Identificar sempre ambos os tipos de produção é de fato
ruim, só que não tanto para os
poetas, quanto para os letristas e
compositores.
Por mais que, com a mesma
matéria-prima verbal, criem objetos semelhantes, eles trabalham
de acordo com limitações e convenções diferentes, respondendo
a/ou desafiando tradições que
não coincidem de todo.
Por exemplo, a maior parte da
poesia brasileira que descende do
modernismo tem sido escrita em
versos livres e sem rima, de modo
que, contraposta a ela, quase toda
a MPB, por ser metrificada e rimada, pareceria injustamente tradicionalista. Caetano, quando
compõe, pode estar pensando em
Noel Rosa e em Drummond. Um
poeta atual também, mas provavelmente na ordem inversa.
Há palavras, expressões, recursos que, corriqueiros na poesia,
são quase impossíveis de usar na
MPB. E vice-versa.
Uma vez que as mesquinhas
disputas em torno do prestígio
cultural sejam postas de lado, a
música popular tem apenas a ganhar se for examinada, julgada e,
principalmente, desfrutada nos
seus próprios termos, que, embora nem inferiores nem superiores,
tampouco são sempre os mesmos
que os da poesia.
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