São Paulo, sábado, 05 de outubro de 2002

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LIVROS/LANÇAMENTOS

"HOMEM QUE É HOMEM NÃO DANÇA"

Romance de 1984 é reeditado

Norman Mailer confere densidade a policial noir

CARLOS EDUARDO LINS DA SILVA
ESPECIAL PARA A FOLHA

"Homem que É Homem Não Dança" é um romance policial inegavelmente inspirado por Raymond Chandler e Dashiell Hammett, mas não menos inquestionavelmente escrito por Norman Mailer.
Ou seja: a ambientação, a temática, a caracterização dos personagens, o humor negro, até o estilo que caracterizam o "roman noir" americano clássico dos anos 30 e 40 estão presentes. Mas, em vez da concisão elegante de Hammett, aparece o caudaloso rio de palavras que tornam os livros de Norman Mailer tão literalmente pesados. No lugar da simplicidade narrativa, espaço para considerações metafísicas. Em vez de violência apenas sutilmente sugerida, descrições escatológicas.
Evidentemente, o leitor tem vantagens e desvantagens com essas trocas. Mailer é denso, instiga reflexões que podem ser produtivas. Mas pode se tornar aborrecido, soar pretensioso e às vezes seu enredo é incompreensível.
Nada disso é novidade para quem conhece bem o trabalho desse intelectual notável, do tipo "maior que a vida". Nada é modesto ou pequeno para Mailer, nem mesmo um livro intencionalmente menor, como este. "Homem que É Homem Não Dança", de 1984 (já publicado antes no país com o título "Os Machões Não Dançam"), não foi escrito para cumprir a promessa nunca realizada de escrever "o maior romance americano".
Nem mesmo sua melhor obra de ficção, "Os Nus e os Mortos", atingiu esse objetivo. Foi no terreno do ensaio e do novo jornalismo que Mailer deixou sua contribuição mais importante para as letras do século 20. Foram "Os Degraus do Pentágono", "A Canção do Carrasco", "A Luta" que fizeram de Mailer um personagem compatível com a sua ambição.
Mas não é só a curiosidade em torno do autor que justifica a leitura de "Homem que É Homem". Embora a história seja um pouco frouxa para um legítimo policial, tem surpresas desconcertantes e mantém questões que seguram a atenção ao longo de quase todas as páginas: será que o personagem principal com muitos tons autobiográficos de fato matou a mulher?, será mesmo dela a cabeça que ele achou em seu carro após uma longa noite de muito cigarro e bourbon?
A maior recompensa da leitura dessa ficção de Mailer são as pinceladas do ensaísta, as muitas observações sobre os EUA e a condição humana que os personagens vão fazendo em meio à trama.
Como a comparação entre dois vícios dificílimos de abandonar: o fumo e o casamento. Ou a constatação de que em Provincetown, cidadezinha da costa de Massachusetts onde desembarcaram pela primeira vez os peregrinos ingleses que constituiriam a nação americana, a única construção no exato ponto de sua chegada era um imenso motel. Ou a observação de que "as louras acham obsceno não se comportar como anjos ou putas cada opção deve estar igualmente disponível".
Essa é a graça de Norman Mailer, um dos fundadores do "Village Voice", o editor de "Dissent", um dos animadores do movimento contra a Guerra do Vietnã. Embora às vezes pareça ter-se rendido à doutrina do politicamente correto sem jamais perder a "grandeur" (seu mais recente livro, "O Evangelho Segundo o Filho", é uma bem comportada reconstrução do Novo Testamento em que o autor é Jesus), Mailer é capaz de resistir à unanimidade burra, como provou ao se alinhar entre os poucos intelectuais americanos que se recusaram a engrossar os clamores chauvinistas que se seguiram ao 11 de setembro de 2001 naquele país.

Carlos Eduardo Lins da Silva é diretor-adjunto de Redação do jornal "Valor Econômico"



Homem que É Homem Não Dança    
Autor: Norman Mailer
Editora: Record
Quanto: R$ 35 (320 págs.)




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