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MARCELO COELHO
De Bronco a Maxwell Smart, um longo caminho
A época da "Família Trapo" eu acompanhei ainda
criança, o que não torna muito
confiáveis as minhas opiniões sobre Ronald Golias no seu auge.
Mas depois, já na idade adulta,
quando me acontecia de topar
com ele nos barracos da TV aberta, não tinha jeito. Bem que eu
tentava não rir, mas em questão
de poucos segundos a graça pessoal de Golias superava qualquer
restrição que eu pudesse fazer à
grosseria do texto e à estupidez da
situação em cena.
Foi assim neste último sábado,
com o especial que o SBT transmitiu em homenagem póstuma
ao comediante. Lá estava, reconfortante e inalterável, Carlos Alberto da Nóbrega, no papel clássico do cidadão normal, sensato,
bem-posto na vida, que há décadas ele representa no mesmo programa.
Digo "papel" e "representa",
mas está errado. Carlos Alberto
da Nóbrega não parece ser mais
do que ele próprio, nas atribuições constituídas de diretor do
programa ou agente comercial
dos humoristas; mantém-se no
plano de uma realidade empresarial, plácida e concreta, enquanto
se sucedem no famoso banco de
praça os tipos mais aberrantes da
psicologia circense: o marido irascível, o índio impávido e solene, o
maricão descontrolado, a velhinha surda de guarda-chuva, que
sei eu...
Uma irrealidade extrema animava todos aqueles personagens
humorísticos, mas o caso de Golias era diferente. A força de seu
talento cômico libertava-o de
qualquer papel, de qualquer personagem, de qualquer roteiro
preestabelecido. Caracterizado
como um velhote de barba branca, estabelecido como um dono de
botequim, ou aparecendo com o
boné virado de criança, ele era
sempre o mesmo, e nisso estava o
mais infernalmente engraçado de
suas apresentações.
No programa do SBT, reprisou-se uma visita de Hebe Camargo à
"Praça". Não havia "script" possível: Bronco atirou-se sobre ela
com uma fúria humorística selvagem. "Que testa! Que testa!", dizia
ele sem parar, como se enlouquecido de desejo sexual. Hebe Camargo não tinha o que responder,
torcendo-se de riso.
Com Agnaldo Rayol, não foi diferente. Golias fixou-se no furinho do queixo do cantor. Veio um
festival de gozações grosseiras,
numa insistência maluca; a fala
do comediante se cortava de pausas sem razão, como se lhe faltasse
um pouco de assunto, e aí ressurgia em novas investidas, num jogo de gato e rato. Seria quase violento, não fosse ingênuo, instintivo, feliz.
É como se o poder de Golias fosse grande demais para incidir
apenas sobre as situações ficcionais de uma comédia. Ele não
contracenava com os personagens, mas com os atores reais; empenhava-se em fazer rir, não só o
público, mas também seus colegas
de palco; anarquizava a própria
representação como uma força
natural, capaz de destruir qualquer coisa combinada nos bastidores. Faz sentido que se procurassem, então, celebridades do
mundo real, como Hebe ou Pelé,
para momentaneamente conviver com Bronco.
Na "Família Trapo", o papel
conferido a Golias era o do cunhado parasita e bagunceiro. Seu
antagonista, Otelo Zeloni, tratava de exercer as torturadas responsabilidades que se reservam
ao dono de uma fábrica de grampos em estado pré-falimentar.
Curiosa a escolha de Zeloni para
esse papel: não só porque era calvo mas também porque seu jeitão
de empresário paulista, com sotaque italiano e dinamismo irrefreável, já fora testado no filme
"São Paulo S.A.", de Luís Sérgio
Person.
Enquanto Zeloni se encarregava de levar nosso país para a frente, num industrialismo ainda familiar e rústico, Bronco o perseguia como a sombra do atraso tupiniquim. Tratava-se de encarnar o brasileiro em seus momentos de máxima incompetência e
canastrice. Ao prometer que o
cheque tinha fundos, ao fingir-se
atento em conversas que não o interessavam, ao julgar-se perfeito
no portunhol, ao promover gestos
de conciliação movidos pela covardia mais explícita, ao provocar com insultos os adversários,
desde que estivessem distantes o
bastante para não ouvi-lo, Bronco era brasileiríssimo na sua absoluta falta de amor-próprio e na
sua também absoluta confiança
de que o mundo estava sempre a
seu favor.
Nada mais diferente de Bronco
do que Maxwell Smart -para
lembrar Don Adams, outro ator
cômico falecido na mesma semana. O espião catastrófico do seriado "Agente 86" acreditava piamente na modernidade eletrônica e na própria competência. A
graça de Smart estava no seu empenho anglo-saxão em cumprir
missões que uma burrice pétrea
tornava mais impossíveis do que
nunca.
No auto-engano de Bronco, não
havia lugar para a arrogância.
Ele não aceitaria missão nenhuma, exceto, talvez, a de acabar
com um mundo em que a idéia de
"missão" pudesse ser cogitada.
Carlos Bronco Dinossauro tinha mesmo de ser o seu nome
completo; não pelo que sugerisse
de brutalidade destrutiva, mas
sim pelo que trouxesse de anacrônico, de sem-lugar, de condenado
à extinção, talvez.
Só que aquela função de Bronco, a de sabotar todos os modestos
esforços desenvolvimentistas de
Zeloni, terminava extravasando
para o palco; em última análise, o
talento de Golias tornaria inviável a própria encenação teatral,
explodindo em puro improviso o
que se armava como uma sitcom
brasileira antes do tempo.
Realidade e farsa reduziam-se
para ele a uma coisa só; enquanto
isso, o país, com os lances de tragicomédia e de grotesco que se conhecem, ia de fato se desenvolvendo. Não é à toa que Golias terminou na periferia da programação, sobrevivendo como uma loucura arcaica, um desatino infantil, uma obscenidade gloriosa e reprimida sob a ordem falsamente asséptica da modernidade.
@ - coelhofsp@uol.com.br
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