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"Sou uma vítima da história", diz Peter Handke
Austríaco conta que episódio de apoio a líder sérvio Milosevic o enriqueceu, "mas foi uma pena por causa do preconceito"
Escritor se declara um admirador da cultura americana e diz que "sempre estará com Walt Whitman e William Faulkner"
DA REPORTAGEM LOCAL
O sertão para Peter Handke é
a Sierra de Gredos, na Espanha.
É lá que a personagem de "A
Perda da Imagem ou Através da
Sierra de Gredos" procura resgatar as imagens perdidas de
sua vida, ou aquelas em via de
extinção. São imagens em um
sentido amplo, incluindo imagens-palavras.
Como toda a obra de Peter
Handke também é um exercício sobre a ética na arte de escrever, o livro é igualmente
uma alegoria sobre a literatura.
Na obra, uma banqueira originária da antiga Alemanha
Oriental contrata para narrar
sua história um escritor anônimo, que a conheceu em seus
dias de glória e vem da mesma
região de Dom Quixote. Uma
referência óbvia à obra seminal
de Cervantes.
Qual é a importância desse
espaço alegórico inóspito e pré-civilizacional na Espanha para
a jornada de redescoberta da
personagem? Como apontou a
tradutora Simone Homem de
Mello no posfácio à edição, para o brasileiro é inevitável a referência a Guimarães e Euclydes.
Questionado pela Folha,
Handke evita falar em influências ou referências entre obras,
mas se mostra um leitor atento
dos brasileiros.
"Guimarães Rosa e Euclydes
da Cunha, os dois, foram grandes aventuras na minha vida de
leitor. Uma aventura como
"Perceval", "Lancelot" e outras
narrativas medievais."
É claro, não se espere de
Handke a monumental reelaboração da mitologia e da língua nativa nem um estudo sociológico. O sertão de Handke é
um espaço pré-capitalista, onde a personagem deve redescobrir a autenticidade. Também
deve reaprender a enxergar, a
perceber os outros.
Essa pode ser uma boa descrição da ética do próprio
Handke, que tem hábitos pré-tecnológicos. Como ocorreu
em todos os seus livros, "A Perda da Imagem" foi escrito à
mão. Ele não usa computador e
ainda se comunica por fax -a
forma como respondeu à Folha, por escrito.
Ele reuniu os tradutores das
versões estrangeiras do livro na
própria Sierra de Gredos, na
Espanha, para que pudessem
conhecer o local. Mas fez isso
depois que todos já tinham terminado suas versões. É avesso a
entrevistas e às badalações
quase obrigatórias atualmente
no meio literário.
Um dos principais autores de
língua alemã do século 20, influenciado no início por Kafka
e pelo nouveau roman de Alain
Robbe-Grillet, Handke ficou
conhecido em 1966 ao participar de um encontro do Grupo
47, em Princeton. A associação
de escritores pregava a refundação da literatura alemã no
pós-guerra, tendo entre seus
membros Heinrich Böll, Günter Grass e Alexander Kluge.
Handke, entre outros insultos,
disse que os autores sofriam de
"impotência descritiva". Foi
um episódio que contribuiu para o fim do grupo. Data dessa
época sua peça mais famosa,
"Insultando o Público".
Depois de tanta polêmica,
Handke atualmente evita comentar o estado da literatura
alemã, considerada muito difícil. A busca de um público mais
amplo nas últimas décadas afetou a sua qualidade? "Sem resposta", respondeu. "Salvo que
busca e grande público não caminham juntos."
E a omissão de lugares e referências no livro? Qual é a diferença entre ser realista e mostrar a verdade? "Boa questão",
diz o escritor. "Eu respondo
com uma parábola. Cézanne,
como pintor, não era realista
mas real. Esse é meu ideal."
No início da carreira, o escritor compartilhava com o cineasta Wim Wenders o interesse pela cultura americana,
curtiam rock e eram companheiros de "jukebox". Atualmente, para um escritor de língua alemã, o país ainda exerce
fascínio? "Ah, sim! Sempre estarei com Walt Whitman e William Faulkner. E também com
os índios do Novo México ou de
Yukon, no Alasca."
Natural de Griffen (Áustria),
nascido em 1942, Handke viveu
em Berlim (oriental) entre
1944 e 1948, antes de voltar para sua cidade natal. Retornou à
Alemanha (Düsseldorf, Kronberg e Berlim), passou por Paris, foi para os EUA (em 1978 e
1979) e morou em Salzburgo
(Áustria), antes de se fixar em
Chaville, perto de Paris, em
1991. Mesmo tendo ligações íntimas com a Alemanha, evita
temas que envolvam o país.
Por exemplo: as comemorações dos 20 anos da queda do
Muro de Berlim, que impactou
toda a cultura de língua alemã.
Como os alemães se relacionam com sua história hoje?
"Sou austríaco, esloveno. Sou
sobretudo vítima da história,
pela questão dos Bálcãs".
Handke toca no ponto fundamental, que marcou sua carreira. Em março de 2006, ele compareceu ao funeral de Slobodan
Milosevic, líder sérvio que era
julgado por crimes de guerra
durante o conflito na Iugoslávia. Ele nega que tivesse apoiado o ex-líder, mas seu discurso
na ocasião causou controvérsia
e levou ao cancelamento de
suas peças e à retirada de um
prêmio, o Heiner Heine.
Ele se arrepende? "O episódio me enriqueceu. Mas é uma
pena por causa dos leitores, por
causa do preconceito."
(MARCOS STRECKER)
A PERDA DA IMAGEM OU ATRAVÉS DA SIERRA DE GREDOS
Autor: Peter Handke
Tradução: Simone Homem de Mello
Editora: Estação Liberdade
Quanto: R$ 68 (584 págs.)
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