São Paulo, segunda-feira, 05 de outubro de 2009

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"Sou uma vítima da história", diz Peter Handke

Austríaco conta que episódio de apoio a líder sérvio Milosevic o enriqueceu, "mas foi uma pena por causa do preconceito"

Escritor se declara um admirador da cultura americana e diz que "sempre estará com Walt Whitman e William Faulkner"

DA REPORTAGEM LOCAL

O sertão para Peter Handke é a Sierra de Gredos, na Espanha.
É lá que a personagem de "A Perda da Imagem ou Através da Sierra de Gredos" procura resgatar as imagens perdidas de sua vida, ou aquelas em via de extinção. São imagens em um sentido amplo, incluindo imagens-palavras.
Como toda a obra de Peter Handke também é um exercício sobre a ética na arte de escrever, o livro é igualmente uma alegoria sobre a literatura.
Na obra, uma banqueira originária da antiga Alemanha Oriental contrata para narrar sua história um escritor anônimo, que a conheceu em seus dias de glória e vem da mesma região de Dom Quixote. Uma referência óbvia à obra seminal de Cervantes.
Qual é a importância desse espaço alegórico inóspito e pré-civilizacional na Espanha para a jornada de redescoberta da personagem? Como apontou a tradutora Simone Homem de Mello no posfácio à edição, para o brasileiro é inevitável a referência a Guimarães e Euclydes.
Questionado pela Folha, Handke evita falar em influências ou referências entre obras, mas se mostra um leitor atento dos brasileiros.
"Guimarães Rosa e Euclydes da Cunha, os dois, foram grandes aventuras na minha vida de leitor. Uma aventura como "Perceval", "Lancelot" e outras narrativas medievais."
É claro, não se espere de Handke a monumental reelaboração da mitologia e da língua nativa nem um estudo sociológico. O sertão de Handke é um espaço pré-capitalista, onde a personagem deve redescobrir a autenticidade. Também deve reaprender a enxergar, a perceber os outros.
Essa pode ser uma boa descrição da ética do próprio Handke, que tem hábitos pré-tecnológicos. Como ocorreu em todos os seus livros, "A Perda da Imagem" foi escrito à mão. Ele não usa computador e ainda se comunica por fax -a forma como respondeu à Folha, por escrito.
Ele reuniu os tradutores das versões estrangeiras do livro na própria Sierra de Gredos, na Espanha, para que pudessem conhecer o local. Mas fez isso depois que todos já tinham terminado suas versões. É avesso a entrevistas e às badalações quase obrigatórias atualmente no meio literário.
Um dos principais autores de língua alemã do século 20, influenciado no início por Kafka e pelo nouveau roman de Alain Robbe-Grillet, Handke ficou conhecido em 1966 ao participar de um encontro do Grupo 47, em Princeton. A associação de escritores pregava a refundação da literatura alemã no pós-guerra, tendo entre seus membros Heinrich Böll, Günter Grass e Alexander Kluge.
Handke, entre outros insultos, disse que os autores sofriam de "impotência descritiva". Foi um episódio que contribuiu para o fim do grupo. Data dessa época sua peça mais famosa, "Insultando o Público".
Depois de tanta polêmica, Handke atualmente evita comentar o estado da literatura alemã, considerada muito difícil. A busca de um público mais amplo nas últimas décadas afetou a sua qualidade? "Sem resposta", respondeu. "Salvo que busca e grande público não caminham juntos."
E a omissão de lugares e referências no livro? Qual é a diferença entre ser realista e mostrar a verdade? "Boa questão", diz o escritor. "Eu respondo com uma parábola. Cézanne, como pintor, não era realista mas real. Esse é meu ideal."
No início da carreira, o escritor compartilhava com o cineasta Wim Wenders o interesse pela cultura americana, curtiam rock e eram companheiros de "jukebox". Atualmente, para um escritor de língua alemã, o país ainda exerce fascínio? "Ah, sim! Sempre estarei com Walt Whitman e William Faulkner. E também com os índios do Novo México ou de Yukon, no Alasca."
Natural de Griffen (Áustria), nascido em 1942, Handke viveu em Berlim (oriental) entre 1944 e 1948, antes de voltar para sua cidade natal. Retornou à Alemanha (Düsseldorf, Kronberg e Berlim), passou por Paris, foi para os EUA (em 1978 e 1979) e morou em Salzburgo (Áustria), antes de se fixar em Chaville, perto de Paris, em 1991. Mesmo tendo ligações íntimas com a Alemanha, evita temas que envolvam o país.
Por exemplo: as comemorações dos 20 anos da queda do Muro de Berlim, que impactou toda a cultura de língua alemã.
Como os alemães se relacionam com sua história hoje?
"Sou austríaco, esloveno. Sou sobretudo vítima da história, pela questão dos Bálcãs".
Handke toca no ponto fundamental, que marcou sua carreira. Em março de 2006, ele compareceu ao funeral de Slobodan Milosevic, líder sérvio que era julgado por crimes de guerra durante o conflito na Iugoslávia. Ele nega que tivesse apoiado o ex-líder, mas seu discurso na ocasião causou controvérsia e levou ao cancelamento de suas peças e à retirada de um prêmio, o Heiner Heine.
Ele se arrepende? "O episódio me enriqueceu. Mas é uma pena por causa dos leitores, por causa do preconceito." (MARCOS STRECKER)


A PERDA DA IMAGEM OU ATRAVÉS DA SIERRA DE GREDOS

Autor: Peter Handke
Tradução: Simone Homem de Mello
Editora: Estação Liberdade
Quanto: R$ 68 (584 págs.)



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