São Paulo, quarta, 5 de novembro de 1997.




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Uma idéia que continua se realizando

SUELY ROLNIK
Há uma famosa frase de Mário Pedrosa que vem ressoando há várias décadas, na qual ele define a arte como "o exercício experimental da liberdade". Essa frase, pronunciada acerca dos neoconcretos Lygia Clark e Hélio Oiticica, poderia traçar uma linha que os liga a seus antepassados do movimento antropofágico e a inúmeros de seus contemporâneos -alguns de sua geração, especialmente Glauber Rocha; outros da geração seguinte, por exemplo, Julio Bressane, no cinema, e os poetas/compositores tropicalistas, com suas requintadíssimas obras de canção popular. O movimento tropicalista já nasceu sob o signo desse elo, um neo-antropofagismo, segundo Caetano Veloso.
Cada um dos criadores que povoam essa linha incorpora o banal, à sua maneira, afirmando uma estética viçosa e inventiva que impregna o cotidiano brasileiro e que não havia sido inscrita no sistema oficial da cultura. Eles não só trazem essa estética para a cena artística, mas a misturam com as mais sofisticadas e experimentais referências eruditas dos assim chamados "centros hegemônicos".
Mas a linha do "exercício experimental da liberdade" não se esgota nesses criadores; ela continua reatualizando-se , estendendo-se ao contemporâneo e ligando outras tantas obras. É nítida sua presença no trabalho de Tunga, por exemplo, no qual se articula uma fórmula singular de reativação dessa marca antropofágico-neo-concreto-tropicalista da cultura brasileira. (...)
O assim chamado "Movimento Antropofágico" extrai e reafirma a ética que preside esse ritual-devorar os seus outros, mas apenas os bravos, pois que espíritos fracos poderiam ser veneno para seus corpos-, fazendo-a migrar para o terreno da cultura.
Levado para esse terreno, o princípio da antropofagia consiste em se banquetear com universos de referência das culturas "colonizadoras" (e não só delas), devorá-los na íntegra, ou somente pedaços seletos (...)
Assumir e reafirmar a ética antropofágica como legado da tradição brasileira é descartar qualquer idéia de identidade nacional. À primeira vista, isto pode parecer paradoxal, mas não o é se entendermos que, pensando nestes termos, o que rege a formação das obras de cultura e de existência no país, é exatamente a mistura.


Trecho de ensaio de Suely Rolnik publicado no catálogo da retrospectiva da obra do artista plástico brasileiro Tunga, nos EUA.



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