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RECEITAS DO MELLÃO
O sorriso do seu primeiro amor
HAMILTON MELLÃO JUNIOR
Colunista da Folha
Eles se amavam muito. Ele tinha
18, ela uns dez a mais, acho. Ele,
clarinetista da Estadual. Ela, professora da rede pública. Dividiam
o dinheiro contadíssimo, a certeza irresponsável de serem felizes e
a quitinete nº 2.114, Bloco E, edifício Copan.
Acordavam cedo, ela para as
crianças e o quadro-negro, ele para os ensaios e as estantes. Passavam o dia se esperando para beijos e amor. Se amavam muito.
Bem mais tarde, ela ia buscar
um extra no bar Redondo, esquina do Teatro de Arena. Bebendo
pinga e coragem, aguardava a ligação do lugar onde iria tocar naquela noite os standards manjadíssimos -que iam ficando inaudíveis quanto mais a bebida e a
noite se consumiam.
Na volta, era descer a Consolação aos pulos, cuidando de não
pisar no contorno do mapa reproduzido na calçada. Pé sim, pé
não, pé sim... Abrir a porta e ela ali
esperando, para lhe aliviar a dor
do lábio com arnica e própolis.
Numa qualquer noite, um bêbado qualquer que ele hoje sabe ser
um anjo, deixou cair uma nota de
US$ 50. Vorazmente, ele a cobriu
com o sapato e ficou acariciando-a durante horas, até ter a oportunidade de pegá-la.
Mais alegres do que nunca, eles
consumiram o inaudito presente
no Filé do Moraes. Confiante, ele
estalou os dedos e pediu dois descomunais "chateaubriands" e todas as cervejas. Faziam planos para um futuro que sabiam irrealizável, enquanto cortavam febrilmente nacos de filé maiores do
que suas próprias bocas.
Ela ria sem pudor, mostrando
fiapos da carne entrados nos dentes. E é assim que ele a vê até hoje,
quando se lembra dela.
No dia seguinte, quando chegou
ao teatro para o ensaio, viu seu
nome incluído no cartaz dos "excluídos por insuficiência técnica".
Comprou um jornal e se interessou pela oferta de curso de cozinheiro do Senac. E acredita, até
agora, que seguiu esta profissão
para acender, na boca das pessoas, o sorriso do seu primeiro
amor.
E-mail: mellao@uol.com.br
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