São Paulo, Sexta-feira, 05 de Novembro de 1999
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RECEITAS DO MELLÃO
O sorriso do seu primeiro amor

HAMILTON MELLÃO JUNIOR
Colunista da Folha

Eles se amavam muito. Ele tinha 18, ela uns dez a mais, acho. Ele, clarinetista da Estadual. Ela, professora da rede pública. Dividiam o dinheiro contadíssimo, a certeza irresponsável de serem felizes e a quitinete nº 2.114, Bloco E, edifício Copan.
Acordavam cedo, ela para as crianças e o quadro-negro, ele para os ensaios e as estantes. Passavam o dia se esperando para beijos e amor. Se amavam muito.
Bem mais tarde, ela ia buscar um extra no bar Redondo, esquina do Teatro de Arena. Bebendo pinga e coragem, aguardava a ligação do lugar onde iria tocar naquela noite os standards manjadíssimos -que iam ficando inaudíveis quanto mais a bebida e a noite se consumiam.
Na volta, era descer a Consolação aos pulos, cuidando de não pisar no contorno do mapa reproduzido na calçada. Pé sim, pé não, pé sim... Abrir a porta e ela ali esperando, para lhe aliviar a dor do lábio com arnica e própolis.
Numa qualquer noite, um bêbado qualquer que ele hoje sabe ser um anjo, deixou cair uma nota de US$ 50. Vorazmente, ele a cobriu com o sapato e ficou acariciando-a durante horas, até ter a oportunidade de pegá-la.
Mais alegres do que nunca, eles consumiram o inaudito presente no Filé do Moraes. Confiante, ele estalou os dedos e pediu dois descomunais "chateaubriands" e todas as cervejas. Faziam planos para um futuro que sabiam irrealizável, enquanto cortavam febrilmente nacos de filé maiores do que suas próprias bocas.
Ela ria sem pudor, mostrando fiapos da carne entrados nos dentes. E é assim que ele a vê até hoje, quando se lembra dela.
No dia seguinte, quando chegou ao teatro para o ensaio, viu seu nome incluído no cartaz dos "excluídos por insuficiência técnica". Comprou um jornal e se interessou pela oferta de curso de cozinheiro do Senac. E acredita, até agora, que seguiu esta profissão para acender, na boca das pessoas, o sorriso do seu primeiro amor.

E-mail: mellao@uol.com.br


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