São Paulo, Sexta-feira, 05 de Novembro de 1999
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GASTRONOMIA
O diplomata aposentado e 2,8 kg de comida

NINA HORTA
Colunista da Folha

Alan Davidson é um dos mais conhecidos escritores de comida ou, pensando bem, o mais conhecido estudioso do "assunto comida" na Inglaterra.
É prodigiosamente sabido, um erudito que disfarça a sapiência sob uma capa de ironia e muita modéstia.
Era diplomata de carreira e, em 1961, foi com a família para a Tunísia. Comiam peixes deliciosos, mas com nomes capazes de confundir -em árabe, francês e italiano. A mulher pediu uma aula sobre peixes e ele escreveu um livreto que, por acaso, caiu nas mãos de Elizabeth David, a cozinheira-musa.
Ela imediatamente farejou um cientista-escritor e persuadiu Davidson a completá-lo com todos os peixes do Mediterrâneo.
Em 1975, aposentou-se do serviço diplomático com certa angústia, mas já mordido pelo gosto de escrever. Abriu uma pequena editora -mais interessada em reeditar livros antigos- e fundou uma revista semi-acadêmica, a "Petit Propos Culinaires", que se tornou um cult.
Em 1976, em conversa com sua editora, Jill Norman, comentou a falta que sentia de um bom dicionário de comida que abrangesse o mundo inteiro.
Ela respondeu imediatamente: "Escreva um que eu banco". Juntaram-se, então, três editoras e firmaram um contrato com ele. Tinha cinco anos para escrever o dicionário, quase que sozinho. Atrasou um pouco e só conseguiu acabar 20 anos depois -agora. "The Oxford Companion to Food" (Alan Davidson, Oxford University Press, 1999, Londres, Nova York) acabou de sair.
Alan Davidson achou que a demora teve suas vantagens. A história da comida, nesses últimos 20 anos, pegou fogo, e muita coisa escrita apareceu, das quais ele se aproveitou.
Seus verbetes são divididos em quatro grandes categorias:
1 - Plantas comestíveis e produtos derivados;
2 - Animais, pássaros, peixes e produtos derivados;
3 - Alimentos preparados para irem à mesa;
4- Cultura, religião, refeições, dietas e cozinhas nacionais;
Evitou assuntos polêmicos, sobre os quais não tinha juízo totalmente formado. Não incluiu mutações genéticas dos alimentos, nem fez comentários sobre a vaca louca. Não incluiu receitas.
O próprio Alan Davidson chama a atenção para algumas coincidências entre ele e o autor do "Grande Dicionário de Cozinha", Alexandre Dumas, pai: o fato de terem as mesmas iniciais, de Alan ter traduzido para o inglês o dicionário, de gostarem de escrever sobre comida e de não tomarem vinho.
Dumas escreveu seu livro tendo em mente homens sérios e mulheres não tão sérias, que não se cansariam de folheá-lo. Davidson também afirma que quando escreve pensa em mulheres. Talvez por isto o dicionário seja ameno, bom para consulta e até para leitura corrida.
Alexandre Dumas morreu com o livro no prelo, sem ouvir elogios ou críticas. Davidson se regozija por ter escapado desta coincidência e já abriu uma página na Internet para colher sugestões do mundo inteiro, correções inevitáveis, obra aberta, esperando ser reconstruída por todos (http:// www.tripod.com).
Já achei uns recados para dar. No verbete "Brasil Exagerou no Dendê", ele dá uma receita de acarajé com camarão na massa e sugere que o nosso pirão é feito só de farinha e água fervente. De resto, descubro que nunca comi nostoc, um tipo de alga já nomeada por Paracelso, e nunca subi num pé da fruta ramontchi. Jamais temperei meu feijão com advieh, mistura persa, e mal posso esperar para comer biltong.
Era um livro muito esperado. Por curiosidade, levei-o à balança.
Pesa 2,8 kg -único defeito.

E-mail: ninahort@uol.com.br


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