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"A Casa de Virginia W." entra
na intimidade da autora a partir da história de sua cozinheira
Sem medo de Virginia Woolf
JULIÁN FUKS
DA REPORTAGEM LOCAL
Temos o direito a percorrer os
corredores de Virginia Woolf, a
perscrutar seus cômodos semi-impecáveis, a penetrar seu quarto
e acender a luz que lhe maltrata os
olhos, já cansados de tanto ler?
Podemos invadir-lhe as madrugadas, atordoadas pelos bombardeios de guerra, se não pelas vozes
que ecoam incessantes dentro dela? Devemos ler seu diário e conhecer seus segredos, seus amores homossexuais semiproibidos,
livrando-nos de Mrs. Dalloway,
Orlando e outros disfarces que a
escritora tenha inventado?
Se temos, podemos, devemos,
se até o fizemos em "As Horas" e
outras histórias que tomam a autora como personagem, agora o
convite é mais ousado, mais sorrateiro. No recém-lançado "A Casa de Virginia W." (Ediouro), a espanhola Alicia Giménez Bartlett
nos convida a entrar nos domínios de Woolf pela porta dos fundos. Entramos pela cozinha e nos
escondemos atrás das pupilas de
Nelly Boxall, a empregada que, de
1916 a 1934, aceitou as ordens,
acatou os caprichos e condescendeu ao temperamento pétreo e
metamórfico da autora inglesa.
Que, do túmulo há mais de seis
décadas acimentado, Woolf não
tente se remoer em oposição à invasão. A idéia para o convite, se
não o convite em si, partiu dela
mesma, quando em um caderno
rabiscou: "Se este diário não tivesse sido escrito por mim e um belo
dia caísse em minhas mãos, eu
tentaria escrever um romance sobre Nelly, a personagem. Toda a
história entre nós duas, os esforços de Leonard e meus por nos livramos dela, nossas reconciliações". Bartlett pode defender-se:
apenas atendeu a esse apelo.
Uma perspectiva que pouco favorece a Woolf? Que não fala tão
bem dela quanto seus inúmeros
discípulos e críticos, quanto seus
leitores cativos? Provavelmente.
O que salta aos olhos de Nelly, e
conseqüentemente aos nossos
olhos, é a discrepância entre as
idéias progressistas de Woolf e o
trato conservador e quase cruel
que ela destinava às empregadas.
Em entrevista à Folha, Bartlett o
sintetiza: "O feminismo de Woolf
era algo muito avançado para a
época, mas em seus diários vemos
que era uma mulher classista e
dura com suas serventes".
No centro da disputa, a importante instituição do dormitório
próprio, que justifica o título original do romance, "La Habitación
Ajena" (o dormitório alheio). Enquanto Woolf esmerava-se em
defender em discursos a necessidade imperiosa de que toda mulher tenha um espaço só para si
-e inclusive imprimia o regime
em parte de sua casa, dormindo
em quarto separado do de Leonard, seu marido-, pouco se incomodava com o fato de suas empregadas se acotovelarem em um
pequeno e abafado cubículo, que
a custo e lágrimas dividiam.
Não é preciso que nos apiedemos de Nelly, no entanto. Nesta
narrativa, baseada sobretudo na
recriação de um diário nunca
existente da cozinheira -além de
ter trechos ensaísticos e outros de
narração em terceira pessoa, todos fictícios-, vemos que ela
pouco se curvava diante dessas
idiossincrasias. Pelo contrário, ao
longo daqueles quase 20 anos, internalizou o juízo claro de como
era explorada e não desperdiçou
chances de dar isso a ver à patroa.
Uma relação que jamais se submeteria ao mero bordão da hostilidade. Nelly oscilava entre uma
profunda admiração pela mulher
a que servia e uma profunda raiva, justamente por ser capaz de
compreender o que Woolf propagava. Levou tão ao cabo as idéias
de emancipação que ouvia da patroa, que, mais forte que ela, jamais quis se casar, para não "submeter-se a mais uma escravidão".
"O contato com uma mulher
tão especial acabou por aliená-la
de sua classe e, no fundo, a prejudicou, porque tornou-a incapaz
de compactuar com os pressupostos sociais miseráveis aos
quais estava condenada", explica
Bartlett. Em outras palavras, e isso
entendemos ao ler sua história,
Nelly foi a vítima mais evidente
do conflito ideológico deflagrado
na época, tendo compartilhado os
ideais de Woolf, mas não seu
prestígio e sua condição social.
Convém condenar a escritora
inglesa, então? Ou a espanhola,
por invadir-lhe a intimidade? Melhor não condenar ninguém e deixar a conclusão para Bartlett: "É
interessante saber da vida dos escritores, mas ao final o que se deve
levar em conta é apenas a obra".
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