São Paulo, sábado, 05 de novembro de 2005

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"A Casa de Virginia W." entra na intimidade da autora a partir da história de sua cozinheira

Sem medo de Virginia Woolf

JULIÁN FUKS
DA REPORTAGEM LOCAL

Temos o direito a percorrer os corredores de Virginia Woolf, a perscrutar seus cômodos semi-impecáveis, a penetrar seu quarto e acender a luz que lhe maltrata os olhos, já cansados de tanto ler? Podemos invadir-lhe as madrugadas, atordoadas pelos bombardeios de guerra, se não pelas vozes que ecoam incessantes dentro dela? Devemos ler seu diário e conhecer seus segredos, seus amores homossexuais semiproibidos, livrando-nos de Mrs. Dalloway, Orlando e outros disfarces que a escritora tenha inventado?
Se temos, podemos, devemos, se até o fizemos em "As Horas" e outras histórias que tomam a autora como personagem, agora o convite é mais ousado, mais sorrateiro. No recém-lançado "A Casa de Virginia W." (Ediouro), a espanhola Alicia Giménez Bartlett nos convida a entrar nos domínios de Woolf pela porta dos fundos. Entramos pela cozinha e nos escondemos atrás das pupilas de Nelly Boxall, a empregada que, de 1916 a 1934, aceitou as ordens, acatou os caprichos e condescendeu ao temperamento pétreo e metamórfico da autora inglesa.
Que, do túmulo há mais de seis décadas acimentado, Woolf não tente se remoer em oposição à invasão. A idéia para o convite, se não o convite em si, partiu dela mesma, quando em um caderno rabiscou: "Se este diário não tivesse sido escrito por mim e um belo dia caísse em minhas mãos, eu tentaria escrever um romance sobre Nelly, a personagem. Toda a história entre nós duas, os esforços de Leonard e meus por nos livramos dela, nossas reconciliações". Bartlett pode defender-se: apenas atendeu a esse apelo.
Uma perspectiva que pouco favorece a Woolf? Que não fala tão bem dela quanto seus inúmeros discípulos e críticos, quanto seus leitores cativos? Provavelmente. O que salta aos olhos de Nelly, e conseqüentemente aos nossos olhos, é a discrepância entre as idéias progressistas de Woolf e o trato conservador e quase cruel que ela destinava às empregadas. Em entrevista à Folha, Bartlett o sintetiza: "O feminismo de Woolf era algo muito avançado para a época, mas em seus diários vemos que era uma mulher classista e dura com suas serventes".
No centro da disputa, a importante instituição do dormitório próprio, que justifica o título original do romance, "La Habitación Ajena" (o dormitório alheio). Enquanto Woolf esmerava-se em defender em discursos a necessidade imperiosa de que toda mulher tenha um espaço só para si -e inclusive imprimia o regime em parte de sua casa, dormindo em quarto separado do de Leonard, seu marido-, pouco se incomodava com o fato de suas empregadas se acotovelarem em um pequeno e abafado cubículo, que a custo e lágrimas dividiam.
Não é preciso que nos apiedemos de Nelly, no entanto. Nesta narrativa, baseada sobretudo na recriação de um diário nunca existente da cozinheira -além de ter trechos ensaísticos e outros de narração em terceira pessoa, todos fictícios-, vemos que ela pouco se curvava diante dessas idiossincrasias. Pelo contrário, ao longo daqueles quase 20 anos, internalizou o juízo claro de como era explorada e não desperdiçou chances de dar isso a ver à patroa.
Uma relação que jamais se submeteria ao mero bordão da hostilidade. Nelly oscilava entre uma profunda admiração pela mulher a que servia e uma profunda raiva, justamente por ser capaz de compreender o que Woolf propagava. Levou tão ao cabo as idéias de emancipação que ouvia da patroa, que, mais forte que ela, jamais quis se casar, para não "submeter-se a mais uma escravidão".
"O contato com uma mulher tão especial acabou por aliená-la de sua classe e, no fundo, a prejudicou, porque tornou-a incapaz de compactuar com os pressupostos sociais miseráveis aos quais estava condenada", explica Bartlett. Em outras palavras, e isso entendemos ao ler sua história, Nelly foi a vítima mais evidente do conflito ideológico deflagrado na época, tendo compartilhado os ideais de Woolf, mas não seu prestígio e sua condição social.
Convém condenar a escritora inglesa, então? Ou a espanhola, por invadir-lhe a intimidade? Melhor não condenar ninguém e deixar a conclusão para Bartlett: "É interessante saber da vida dos escritores, mas ao final o que se deve levar em conta é apenas a obra".


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