São Paulo, terça-feira, 05 de dezembro de 2000

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ARNALDO JABOR

A liberdade virou uma invenção do demônio

Ninguém quer ser livre. Outro dia, vi na TV um pastor evangélico berrando para a massa: "Não tenham pensamentos livres! O capeta é quem inventa essas idéias. A liberdade é coisa do diabo!".
Como velho iluminista, fiquei horrorizado, mas, depois, pensei: "Para quê aqueles fiéis vão querer liberdade? Eles estão ali para isso mesmo, para ter o imenso alívio da obediência, para ter o consolo de um líder que lhes diga como é o mundo, para que eles esqueçam a tragédia de suas vidas incompreensíveis". Numa sociedade massificada, a liberdade dói muito; o livre-arbítrio é uma tortura. Daí o sucesso mercantil dos pregadores e demagogos.
A euforia liberal do início dos 90 nos prometia uma diversidade criativa, uma tecnologia iluminada. Agora, com a provável vitória de Bush, ou mesmo sem ele, está visível que a América está sendo dominada pela força conservadora das grande corporações. A América reacionária pode comer a América progressista.
Há sintomas no ar de uma doença grave: a paralisia política e a uniformização geral das consciências, como eu já havia assinalado aqui a propósito do filme "O Clube da Luta".
O totalitarismo do mercado global tende a aprisionar a América em uma doença unidimensional, funérea, explodindo de vez em quando em massacres escolares, em psicopatias criminosas, prenúncio de loucuras mais graves que virão. Quem já morou em NY e viu de perto aqueles batalhões de formigas angustiadas e obsessivas, quem já sentiu o descompasso da extrema opulência americana comparada à mediocridade da vida social, quem já viu a tristeza dos ternos cinzentos marchando pelas ruas, quem já viu o exíguo espaço para o ócio, para o amor e o sexo sabe do terror oculto sob aquela face feliz. Nada que seja docemente inútil é permitido. E aquela população de mercadores produtivos, de ordeiros escravos tem um misto de orgulho e ódio de suas vidas.
Não é à toa que, de tempo em tempo, o cinema americano "destrói" Nova York com volúpia em "filmes-catástrofes" como "Independence Day", "Godzilla", "Impacto Profundo". Toda hora o Empire State cai.
Acho que o totalitarismo da maioria, embutido na democracia liberal, como previu Tocqueville, está se configurando. Vejo se esvanecer a maior beleza da América, que sempre foi sua enorme capacidade de se auto-reformar. Como já vimos esse país mudar! Os negros, as mulheres, o pós-Vietnã, os hippies, a sexualidade, o aumento da tolerância cultural. Isso acabou. Cada vez mais, a antiga dinâmica democrática de auto-aperfeiçoamento poderá ser detida pela lógica corporativa do mercado. Quanta coisa maravilhosa a América já nos deu -dos Boeings aos antibióticos, a música, o cinema, tantas coisas... Mas, hoje, o que nos dá, além da arrogância de um pensamento único? Haverá ainda espaço para uma flexibilização da democracia americana? Só um forte "woodstock" nas almas, um novo jazz de esperança poderia trazer isso: uma arte superior de viver, proporcionada pelo progresso das tecnologias. Mas, infelizmente, é mais provável que prevaleça um amor "anal" pelo "mesmo", o impedimento do novo pela celebração da "novidade", o conformismo cretino pela celebração das diferenças.
E o que acontece na América repercute no mundo todo, batendo no Brasil. Essa paralisia da cultura brasileira é um indício dessa influência. E, por isso, aqui embaixo, no meu ofício de crítico cultural, frequentemente sinto-me um babaca inútil ("finalmente ele se encontrou...", rosnarão meus inimigos...). Mas a verdade é que o criticismo, dentro e fora da América, está ficando inviável. A crítica subentende uma mínima "esperança" por outra realidade, que não chega nunca. Daí a crise das artes, a perplexidade ideológica, a infrutífera busca por uma "terceira via" na política.
E, no entanto, no Brasil, na mídia ocidental, só vemos o fervoroso e ostensivo elogio da liberdade. Nos filmes, nos discursos políticos, propaga-se um individualismo delirante, para se legitimar o controle da "mão invisível" das corporações. A tolerância da democracia tenta nos convencer de que o capitalismo estaria se "auto-analisando", no pleno exercício da democracia liberal. A mídia proclama uma obediência ao avesso: "Seja inconformista como todo mundo!". E o sistema estimula uma "pequena liberdade" na vida privada, transformando nosso livre-arbítrio no ridículo privilégio de escolher entre o iogurte A ou B, porque no macro, no atacado, a grande classe-média só quer saber mesmo é de diretrizes, de chefes, de ordens para obedecer.
Hoje, todos os símbolos de revolta já foram fetichizados. O "main stream" da indústria cultural lança filmes "cult" e "underground" programados com todos os simbolozinhos de antigas revoltas: roupas "punk", heróis anarquistas contra a caretice, barbas por fazer, jeans, cinismo "beat-chic". E tudo sob controle de Hollywood.
Num mundo em crise ideológica, as corporações, do alto de suas certezas, nos convidam a um "pensar" fragmentário e vertiginoso, do mesmo jeito que nos incitam ao mercado aberto, mantendo para si um protecionismo esperto, sempre que necessário.
Em um mundo "ilógico e pós-utópico" (arrgggh...!), a América corporativa é a única detentora de um discurso coerente, é a exclusiva proprietária da única "grande narrativa" ainda permitida. Enquanto se alardeia uma democracia formal em cima, um autoritarismo econômico se consolida por baixo. O capitalismo se apossou de uma nova mercadoria: a liberdade. A América corporativa fetichizou o criticismo, a desobediência. Essa democracia abstrata é útil para permitir a eclosão de espasmos de revolta que possam ser cooptados. O capitalismo se autocritica para se reafirmar. A liberdade de expressão é seu supremo artifício.


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