São Paulo, quinta-feira, 05 de dezembro de 2002

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"APOCALIPSE 1,11"

Vertigem nos livra do medo do outro

SERGIO SALVIA COELHO
CRÍTICO DA FOLHA

"Em face de mim, o pior/ até que ele faça rir", propunha Beckett. Esta trágica concepção do humor norteia "Apocalipse 1,11" do Vertigem. A já consagrada profanação de Antônio Araújo, ao levar "gente boa" à cadeia para que entenda do que tem medo na rua, promove como raras montagens a catarse de uma época.
Tocar sem falsos pudores nas feridas sociais pode levar a duas fugas pela tangente: a panfletagem didática contramoralista ou o deboche niilista. Não há fuga possível no presídio do Hipódromo. Quando o público é levado a pressentir o que foi o massacre do Carandiru, o terror por se dar conta do mais vergonhoso episódio da nossa história é comentado em seguida por um ator vestido de Chacrinha: "Vocês querem presunto?". Um alívio de tensão levando a um distanciamento irônico, que leva a consciência ainda mais amarga: o massacre se torna espetáculo para que possamos continuar adiante. Como em Shakespeare, o que os bufões questionam é o próprio teatro.
É através de uma entrega sem concessões que os atores sublimam o grotesco de suas personagens alegóricas. Desautorizam-se enquanto profetas, vestindo-se de palhacinhos marqueteiros, para melhor expor sua dignidade no julgamento final. Mesmo Fernando Bonassi, que estruturou o texto do espetáculo a partir de improvisos dos atores, transcende seu habitual distanciamento irônico e parece confessar através da personagem da Noiva: cuida da loucura dos outros para não enlouquecer. No âmago da honestidade, concretiza seu projeto de uma arte inaugural.
Sai-se do Hipódromo redimido socialmente. O sistema carcerário limitou a quatro semanas a temporada. Ao promover a superação do medo do outro, "Apocalipse" torna obsoleta a intimidação pelo segregacionismo. Com mais algumas semanas, os muros desmanchariam no ar.

Apocalipse 1,11



    
Onde: presídio do Hipódromo (r. do Hipódromo, 600, Brás, tel. 3081-7972)
Quando: de ter. a qui., às 21h, até 19/12
Quanto: entrada franca (senhas distribuídas a partir das 18h)
Patrocinador: Brasil Telecom



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