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RODAPÉ LITERÁRIO
A lógica do horror
"Libertação", de Sándor Márai, é uma sensível ficção sobre um mundo vindo abaixo e o futuro se erguendo
CRISTOVÃO TEZZA
COLUNISTA DA FOLHA
NO SÉCULO 20, o Leste Europeu sofreu até o limite uma
sucessão de traumas políticos, ditaduras e tragédias militares.
Países artificiais se erguiam e se desmontavam ao sabor de planos totalitários e fronteiras étnicas, culturais
e religiosas impermeáveis.
O horror desses ódios que se protegiam e se alimentavam nas burocracias de Estado ganha a sua mais
alta intensidade dramática nos estertores da guerra, quando ninguém
sabe "com exatidão o que a hora seguinte traria".
O breve romance "Libertação", do
húngaro Sándor Márai (1900-1989),
publicado em 1945, quando a Segunda Guerra Mundial terminava, é
uma sensível monografia ficcional
sobre as poucas horas em que um
velho mundo vem abaixo e o fantasma do futuro começa a se erguer do
pó. A intuição sombria do escritor
não falhou: sob o comunismo que se
seguiu, Márai teve sua obra integralmente proibida, e em 1948 saiu da
Hungria para nunca mais voltar.
Na "terceira noite depois do Ano-Novo", na Budapeste ainda nazista
de uma Hungria cooptada pelos alemães, a jovem Erzsébet luta por salvar seu pai, um matemático que protegera alguns judeus, da perseguição
da polícia política. Consegue encontrar alguém que o "empareda" com
outros fugitivos, e ela mesma se vê,
mais tarde, abrigada num porão em
que uma inverossímil mescla de cidadãos tenta simular que não está
acontecendo nada, enquanto os alemães recuam, os russos se aproximam e as bombas explodem.
O narrador se apropria da consciência de Erzsébet para refletir, minuto a minuto, sobre o que está
acontecendo, no desespero de dar
algum sentido àquele mundo em
ruínas: "Não se podia apreender
com a razão que pessoas continuassem [...] exterminando vidas, sem finalidade, no último instante [...]. A
loucura não tem finalidade".
Entre as figuras que emergem da
escuridão, está a mulher que relembra o elegante médico alemão que,
como um maestro, a um gesto de
braço decidia entre a morte e a vida;
em outro momento, o até então confiável zelador do porão "vende" um
protético judeu. Pouco depois, ouve-se um tiro. Um diretor dos Correios,
"com a voz trêmula", reconhece:
"Eu sempre lhe disse que essas coisas eram exageros...". "Eles não são
mais pessoas." Erzsébet, entretanto,
sabe que "tudo era falação vazia, palavras vãs".
Diante do avanço do Exército Vermelho, ela decide ficar ali. Um jovem
soldado russo que adentra o porão
com um fuzil e uma lanterna teria
tudo para representar o papel de um
herói de guerra, mas a realidade é
muito mais dura, como ela logo percebe ao tentar trocar palavras com
ele, num torturante diálogo de surdos em que só o que se revela é a
perspectiva do estupro.
Mais tarde, ela dirá em voz alta:
"Parece que estou livre".
LIBERTAÇÃO
Autor: Sándor Márai
Tradução: Paulo Schiller
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 36,50 (152 págs.)
Avaliação: ótimo
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