São Paulo, terça, 6 de janeiro de 1998.




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VÍMANA
'Era tão decepcionante que nem podre tinha'

do enviado especial ao Rio

A convite da Folha, Lulu Santos, Ritchie e Lobão se reencontraram no Rio para uma sessão de mais de duas horas de lembranças sobre a era Vímana de suas carreiras. Leia, a seguir, trechos da conversa.
(PEDRO ALEXANDRE SANCHES)

Folha - Como tudo começou?
Lulu Santos -
Eu tinha um conjunto de rock, chamado Veludo Elétrico, que se desfez. Metade dele se agregou à célula inicial de um dos primeiros conjuntos nacionais de rock pesado, Módulo Mil. Era um grupo estabelecido e respeitado na cena de rock emergente -e submergente ao mesmo tempo (risos). Fazia até rock em latim!
Meu conjunto, que era maravilhoso -um foi preso, outro pirou, outro a mãe tirou-, faliu, e fui um dia tirar um som com os caras, e rolou. Passamos a ser um quarteto que se chamou Vímana.
Ritchie - Isso tudo é pré-nós.
Lulu - A gente se mudou para a mesma casa, comunidade hippie, arroz integral... Aí o baterista, Candinho, virou hare krishna, não, discípulo do guru Maharaji.
Ritchie - Eu era também. Peguei em 68, fiquei um ano assim...
Folha - O nome surgiu daí?
Lulu -
Foi uma colaboração minha. O que Vímana significa na cosmogonia sânscrita -é uma palavra em sânscrito- é "carruagem dos deuses". Mas eu achava que Vímana era o disco voador.
Lobão - Quando ouvi falar do grupo, havia um personagem do "National Kid" que se chamava Vímana.
Lulu - (Surpreso) É mesmo?
Lobão - É. Fui ver o show até meio a contragosto, só porque achava que era uma sátira ao "National Kid".
Folha - Como entraram Ritchie e Lobão?
Ritchie -
Eu conheci o Luiz Paulo num show do King Crimson, em Londres, e quando vim para o Brasil o reencontrei. Tinha uma banda em São Paulo, Scalácida, que ia abrir para A Bolha no Rio. Sem modéstia nenhuma, eu limpava o chão para eles. Na platéia estava a nata dos roqueiros, e conheci essas bandas brevemente.
Quando vim morar no Rio, estava tocando em conjuntos até mesmo de MPB -como gringo, estava querendo entender aquilo melhor.
Lulu - Não, você estava tocando na Barca do Sol, um grande conjunto carioca.
Ritchie - Justamente, mas muito desorientado. Eles achavam que era sacrilégio eu cantar em português. Acabei me desentendendo e, praticamente no mesmo dia, encontrei Lulu e Luiz Paulo. "Pô, a gente estava esperando você sair dessa merda pra chamar você."
Lulu - Aí fui à sua casa convidar você para entrar no grupo. Levei uma maria-mole.
Ritchie - É isso! (Risos.) Eu tive que experimentar a maria-mole! Eu não sabia o que fazer com aquilo! Mas fiquei superfeliz de saber que alguém sabia que eu cantava e queria que eu cantasse.
Lobão - E eu, afinal, quando vi o show, gostei demais do grupo.
Lulu - Como o Lobão entrou no conjunto foi o seguinte: eu estava numa loja de discos, e uns garotos lá fora, na vitrine, apontavam para mim, fazendo gestos. Um deles, Rui Márcio, entrou e disse: "Você não é o Lulu, do Vímana?". "Sou." "Não está precisando de baterista?" "Estou." "Eu conheço o melhor baterista do Brasil." "Como chama?" "Lobão."
Lobão - Eu fazia um certo gênero, queria largar a bateria e tocar violão clássico. Ouvia o que os outros garotos ouviam, mas dizia que não gostava, que era uma porcaria. Entrei no Vímana, era um fedelho superprotegido pela mãe, que gritava: "Maconheiros!", "Não vai!". Lulu era má companhia.
Lulu - Eu era hippie! E o Ritchie morava num conjugado com a mulher, Leda. Uma das histórias mais lindas que eu já vivi: eu na casa do Ritchie, Leda chegou, às seis da tarde, com uma bisnaga. Partiu em dois, encheu com algum recheio, e Ritchie disse: "Dá licença que este é meu jantar" (risos). Corta pra depois o cara cantando "Menina Veneno". Coisa linda!
Lobão - Quando cheguei, cheguei nervoso, com fixador na cabeça, nunca tinha tocado numa banda. Aquilo estava sendo uma aventura, tinha que ir para São Paulo tocar com a Marília Pêra. Minha mãe: "Não, esse garoto não vai, ele é menor de idade!"
Lulu - Ele tinha 17!
Ritchie - Antes do show, o teatro ficava livre e podíamos ensaiar o Vímana. Foi a primeira oportunidade que tivemos de realmente ensaiar com essa formação.
Folha - O Vímana era sério?
Lobão -
Era a nossa vida!
Ritchie - Nós éramos absolutamente dedicados!
Lobão - Eu pensava que ia encontrar sexo, que ia parar de me masturbar.
Folha - Que quantidade de material vocês chegaram a ter?
Lulu -
Um LP.
Ritchie - Nem era muito vasto, cada música era muito complexa.
Lobão - Dez, 15, 17 minutos...
Lulu - Mas, no final, quando acabou, havíamos desenvolvido o que era nosso melhor material, que foi excelente para a composição individual de cada um de nós depois.
Eu dizia que a gente tinha duas posturas naquele momento: ou virava um superconjunto brasileiro ou ia atrás do Patrick Moraz, que apareceu querendo nos empresariar. O consenso foi ir com ele. Ele falava em cachê de US$ 20 por apresentação, era uma coisa absolutamente colonizadora, pirata.
Ritchie - Na nossa ingenuidade, enxergamos nele uma saída para todas as nossas ideologias. O Lulu teve o bom senso de perceber que não era nada daquilo. Eu, ingenuamente, caí direto.
Lulu - E em seguida vocês me imolaram, em função dele. Talvez ele tenha sido o agente ideal do destino, o anjo exterminador. E você, Lobão, foi o exterminador do exterminador, porque tirou a mulher e a casa do cara (risos).
Com o benefício da história e agência do Lobão, acaba esse caso maravilhoso: ele era casado com essa moça de boa família mineira, estabelecido num casarão deslumbrante com piano de cauda -e o Lobão tomou a mulher dele!
Depois eles foram lá me defenestrar, dizer que, como era eu ou Patrick, iam seguir com Patrick. Lobão foi liderando a tropa, insuflado pelo ódio surdo do outro que queria aquela vingança.
No final, Ritchie se virou e chorou. Depois disso ele nunca mais na vida teve nenhum tipo de demonstração de afeto (risos). Sempre valorizei aquele momento, porque imagino o quanto aquilo tinha sido maior que a natureza de inglês reprimido dele.
Folha - Existe uma lenda de que os próprios integrantes do Vímana preferem esquecer o passado...
Lulu -
No final, a gente havia feito as melhores canções. Nós três tínhamos canções boas o suficiente. Já havia músicas baseadas no encadeamento harmônico de canções disco. Ritchie já estava com um número de canções delicadas.
Mas naquela hora houve muita frustração, eram umas jams intermináveis, 14 minutos de "blrrrr". Um dia, num ensaio, saí, fumei um baseado na pedra e pensei: esse som não é nada (risos).
Ritchie - É uma merda.
Lobão - E a convivência foi como um serviço militar.
Lulu - Foi psicodrama.
Lobão - Esse cara (o Lulu) me desarmou, me convenceu a comer carne. Era psicodrama mesmo.
Lulu - Uma vez falei que não gostava de esfregar em você (Lobão) porque tinha pêlo no braço e eu sentia uma coisa que fazia lembrar meu irmão. Lembra? Você ficou ofendidíssimo. Olha a que nível as coisas chegavam! Naquela época, o coração da década de 70, a gente morava numa nação esfacelada. A estrutura era de repressão...
Lobão - E a gente não entendia nada de nada.
Lulu - E o pouco que entendia, sentia muito medo. Toda uma vertente do país tomou a questão do comportamento para se salvar. Pensa no Arnaldo Baptista, um pouco mais velho que a gente, que talvez não tivesse mais inocência ou saco ou tempo para gastar com aquela merda toda, que mais uma vez impedia o crescimento de um artista genial como ele era.
Ritchie - As gravadoras diziam: o rock nunca vai ter público, vocês estão falando para a parede. Quem vendia disco era a Diana Pequeno. Então algumas pessoas cultuavam o Vímana como única expressão de alguma coisa.
Folha - Por que o LP nunca saiu?
Lulu -
Porque nenhuma gravadora se interessou por ele.
Lobão - Não, na verdade não. Aconteceu uma coisa horrorosa, o Lulu saiu. O disco deveria sair.
Ritchie - Não, promessas, promessas. Você, ingenuamente, acreditava. O compacto, gravado em 76, levou oito meses para sair.
Lulu - Essa capa é do Carlos Vergara, não é, Ritchie?
Ritchie - Não, acho que é a fotografia do tapete lá de casa (risos).
Lulu - Não foi o Vergara que fez essa capa, Ritchie?
Ritchie - Não, ele fez a capa do "Menina Veneno". Eu acho que não, hein?
Lulu - Eu acho que sim.
Ritchie - Eu acho que sim!
Folha - Vocês têm algum "podre" do Vímana para contar?
Lobão -
Era tão decepcionante que não tinha podre! (Risos.)



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