São Paulo, Quinta-feira, 06 de Janeiro de 2000


Envie esta notícia por e-mail para
assinantes do UOL ou da Folha
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

MÚSICA
66º disco do grupo, que será lançado pela Trama, traz músicas desconhecidas de Adoniran Barbosa
Demônios gravam "lado B" do samba

ANDRÉ BARCINSKI
especial para a Folha


Os Demônios da Garoa, um dos grupos mais importantes e duradouros da música brasileira, está concluindo um novo disco com canções do maior cronista-humorista do samba paulistano, Adoniran Barbosa (1910-1982). Até aí, nada de novo: o grupo já gravou 65 discos em 57 anos de carreira e transformou várias músicas de Adoniran -"Trem das Onze", "Samba do Arnesto", "Saudosa Maloca", "Iracema"- em clássicos da MPB.
A novidade está na escolha do repertório: em vez de regravar sucessos, os Demônios resolveram arriscar em músicas menos conhecidas de Adoniran. Incluíram até uma inédita, "Tadinho do Home" (leia trecho ao lado).
"A idéia foi resgatar várias músicas ótimas que estavam meio esquecidas," diz Toninho Gomes, 73, um dos fundadores do grupo. "Às vezes, lançávamos um disco com oito ou dez músicas, mas só uma ou duas estouravam. Nós fomos pesquisar e vimos que existiam muitas músicas maravilhosas que acabaram não tendo o sucesso que mereciam."
É o caso, por exemplo, de "Prova de Carinho", um belo samba de Adoniran que deu o azar de ter sido lançado no mesmo disco de "Trem das Onze", em 1965, e acabou eclipsada pelo sucesso desta. Ou de "Malvina", samba que, apesar de campeão do Carnaval paulista de 1951, logo sumiu da programação das rádios.
O novo disco dos Demônios da Garoa, produzido por Luis Paulo Serafin e com lançamento marcado para fim de março, pela gravadora Trama, promete ser uma injeção de ânimo na carreira do grupo. "Não faria sentido regravar novamente "Trem das Onze" ou "Saudosa Maloca'", diz Toninho Gomes.
"Queríamos mostrar que nosso repertório tem muitas outras músicas boas." Além de Gomes, o outro remanescente da formação original dos Demônios é Arnaldo Rosa, 71. A formação atual do grupo inclui ainda Izael Caldeira (percussão), Roberto Barbosa (cavaquinho), Sydnei Cláudio (violão), Marco Antônio Bernardo (teclados) e o pandeirista Sérgio Rosa, filho de Arnaldo.
O disco terá 13 faixas e participações especiais de alguns convidados. Jair Rodrigues cantou o samba "Mulher, Patrão e Cachaça", Leci Brandão foi convidada a cantar "Apaga o Fogo, Mané", e o rapper Thaíde foi chamado a colaborar no "Samba do Bixiga".
Leci e Thaíde ainda não gravaram suas participações, mas o produtor Luis Paulo Serafin diz que espera tê-los no estúdio em poucas semanas. Fãs dos Demônios podem estranhar a presença de Thaíde, mas Serafin garante que o grupo não pretende enveredar pelo rap ou outros gêneros: "O Thaíde fará uma participação vocal, mas a música continua 100% Demônios. A pior coisa que um produtor poderia fazer com os Demônios seria mudar o som deles. A sonoridade do grupo é única; você ouve dois segundos e já sabe que são eles".
Os Demônios vêem o novo disco como uma reação à atual fase da indústria fonográfica brasileira, marcada por lançamentos oportunistas. "Fomos procurados por muitas gravadoras, que nos pediram um disco ao vivo com os maiores sucessos, como está todo mundo fazendo agora," diz Odilon Mario Cardoso, empresário do grupo. "Mas não era isso que queríamos fazer."
O pandeirista Sérgio Rosa reclama do monopólio do pagode e do axé e resume a situação: "Hoje, na música brasileira, quem tem bunda vai a Roma. Eu tenho bunda, mas não quero ficar mostrando por aí, mesmo porque ninguém iria querer ver a minha".
A solução foi buscar um novo repertório. Cavucando fundo na memória e ouvindo novamente os velhos 78 rotações dos anos 50, o grupo chegou às 13 músicas do disco.
As faixas abrangem quase 30 anos de carreira de Adoniran, de 1951 ("Malvina") até a inédita "Tadinho do Home", composta em 1980 em parceria com Roberto Barbosa, o Canhotinho, atual membro dos Demônios. Canhotinho guardou a letra de Adoniran durante quase 20 anos.
Toninho Gomes foi apresentado a Adoniran no início dos anos 50, na Rádio Nacional, e diz que nunca conheceu um compositor tão talentoso e indisciplinado: "Ele escrevia coisas e depois esquecia as letras numa gaveta qualquer." Gomes lembra que a letra de "Trem das Onze" ficou quatro anos mofando numa pasta, até que os Demônios resolveram gravá-la.
"A letra original da música era muito grande e complicada; era impossível botar uma música que casasse com aquelas palavras. Nós tentamos um bocado e depois desistimos. Isso foi em 1961. Mais de três anos depois, num ensaio, alguém lembrou da letra, e daí resolvemos tentar de novo. Tivemos de cortar mais da metade das palavras, mas a música ficou uma beleza. Lembro que o Adoniran, depois que ouviu, ficou gritando: "Vocês estragaram a minha música!" Daí o disco estourou e ele ficou quietinho, nunca disse para ninguém que a gente tinha cortado a letra. O que nós já consertamos de música do Adoniran não está escrito."
Apesar de otimistas com o disco, os Demônios sabem que o retorno financeiro será pequeno. O percentual que cabe aos artistas é baixo e, como são muitos os integrantes do grupo, o lucro final de cada um é uma miséria. O grupo sempre viveu mesmo de shows. Em 99, os Demônios se apresentaram 70 vezes por todo o Brasil, marca considerada ruim para a banda, que costuma fazer em média 110 shows por ano.
"Com a crise, o número baixou", diz Toninho Gomes, que calcula já ter feito mais de 6.000 shows na carreira. "O disco serve mais para colocar nosso nome na mídia e conseguirmos agendar shows." Com direito autoral, Gomes parou de se preocupar há muito tempo. "Outro dia recebi um cheque pelos direitos de intérprete de "Trem das Onze". Sabe quanto nós faturamos num trimestre? Exatos R$ 65!" Sérgio Rosa diz que pretende enviar à Rede Globo uma fita com a ótima "Samba Italiano", do novo disco.
"Ouvi dizer que a "Terra Nostra" vai dar um pulo no tempo e chegar aos anos 40 e 50. Por que não põem essa música na trilha sonora? Cairia como uma luva!" Enquanto a Globo não vem, Toninho Gomes diz: "Eu sei que, se fosse americano, estaria rico, curtindo meu iate em Miami. Mas não tem problema, eu sempre preferi o Jabaquara mesmo".


Texto Anterior: Contardo Calligaris: Os jovens reduzem a cinzas duas imagens
Próximo Texto: "Tadinho do Home"
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.