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CONTARDO CALLIGARIS
Os jovens reduzem a cinzas duas imagens
Em Brasília, abril de 1997, o índio Galdino dos Santos foi queimado vivo por cinco jovens da
classe média. Quem não se lembra? Durante várias semanas o
país se indignou a fundo e mergulhou em sua alma para descobrir
alguma razão para esse horror.
A tentação era pensar em um
mal especificamente brasileiro.
Afinal, toleramos formas de miséria extrema e de degradação que
são barbáries próximas ao extermínio. Também sofremos (assim
como se sofre de uma doença) do
caráter atavicamente ávido e predatório das elites. Portanto não
seria estranho que essas e (eventualmente) seus rebentos desconsiderassem totalmente a vida de
quem está fora da única corrida
que vale (do ponto de vista dominante).
No último dia 30 de dezembro, o
editorial da Folha lembrava que
em 1999 mais sete moradores de
rua (este eufemismo para sem-teto) foram queimados, cinco deles
por companheiros de infortúnio.
O que não é, mas parece, menos
trágico. O barco moderno é assim:
não podendo suprimir os pobres,
mas querendo melhorar a vida de
todos, suprime-se a terceira classe.
Quem não pode pagar a segunda
vai para os tubarões. Se os clandestinos se matam entre eles, tanto melhor. Enfim, no Brasil, os assassinos de mendigos, em sua
maioria, não foram adolescentes
ditos de boa família. Pequena variante do mesmo drama nacional?
Não parece. No dia 23 de dezembro, o "The New York Times"
publicou um artigo que me deixou estupefato. O texto começava
descrevendo uma série de assassinatos selvagens: cinco batidos até
a morte e dois decapitados em
Denver. Outro batido, esfaqueado
e decapitado em Richmond, Virgínia, a cabeça neste caso foi levada até uma ponte para pedestres e
aí exposta. Em Seattle, mais dois.
Outros em Dallas, em Chico, Califórnia, em Portland, Oregon, e por
aí vai. Era uma lista de sem-tetos
barbaramente assassinados nos
Estados Unidos em 1999.
Nessa contagem feita a partir
dos relatos na imprensa foram 29
mortos em um ano. Mais seis que
mal sobreviveram aos ataques.
Esses números assustadores subestimam o fenômeno, pois trata-se apenas dos ataques mencionados pela imprensa (a polícia não
conta de maneira diferenciada os
crimes contra moradores de rua).
Além disso, sem-tetos e mendigos
raramente registram queixas.
Os autores desses crimes são na
maioria menores de 21 anos, o
mais jovem tendo apenas 14.
O artigo do "Times" considera
que não foi uma safra especial.
Também é constante que a maioria dos suspeitos e acusados desse
tipo de violência sejam adolescentes ou pré-adolescentes.
Apesar de ser um leitor cuidadoso da grande imprensa americana, eu não fazia idéia de que a
história do índio Galdino fosse
um crime globalizado. Ao contrário, como muitos outros, pensava
que era a expressão de uma iniquidade brasileira.
Ora, em 1999, nos EUA houve 29
Galdinos. Também nenhum deles
produziu o tipo de indignação
que surgiu no Brasil em 97. Não
houve nenhum "mea culpa" nacional. Nem está tendo agora depois do dito artigo. A morte dos
sem-tetos parece lastimável, sem
mais.
Deveríamos festejar, então, nossa capacidade de nos indignar, de
compadecer e de nos questionar?
Pode ser.
De qualquer forma, parece que,
pelo mundo moderno afora, alguns adolescentes acham que matar mendigos e sem-tetos é programa. Esses assassinatos e ataques só podem ser a ponta de um
vasto iceberg de ódio. Mas por que
um adolescente passaria a odiar
mendigos, excluídos e sem-tetos?
Certo: a sociedade sugere que
esse jogo não constitui uma grande culpa. Em nosso mundo, eliminar um mendigo ou um sem-teto
é como roubar algo que não vale
nada, sei lá, um chiclete já mastigado.
Mesmo assim, os jovens que se
envaidecem de matar um mendigo ou que acham graça em sacaneá-lo não devem agir só pelo
prazer de confirmar um subentendido social.
Talvez os sinistros braseiros sejam os autos-de-fé da juventude:
queimando (ou desprezando)
mendigos e sem-tetos, os jovens
reduzem a cinzas duas imagens.
Por um lado, eles exorcizam um
futuro que poderia ser deles, tentam apagar uma ameaça de ostracismo que espreita suas vidas,
caso eles viessem a fracassar.
Por outro lado, eles queimam (e
aqui está o verdadeiro auto-de-fé)
um destino que provavelmente
eles desejam: uma hipóstase de
sua possível revolta, de sua vontade de cair fora, pegar a estrada e
presentear as exigências dos pais
com um belo "beatnik" ou um
"drop-out".
De fato, para um adolescente, o
medo de não conseguir se conformar com ideais dominantes se
confunde com a aspiração a ser
diferente. Desprezar, sacanear ou
mesmo matar mendigos, índios
ou excluídos é uma maneira de
lutar contra o pavor de fracassar
("apago o mendigo que eu mesmo, fracassando, poderia vir a
ser") e no mesmo tempo de silenciar a aspiração a uma vida rebelde ("apago também aquele morador de rua que, contra todas expectativas, eu poderia gostar de
ser").
Em suma, não deveríamos estranhar demasiado esses jovens
sádicos e assassinos. Eles batem
exatamente no que nossa cultura
lhes ensina a detestar: o fracasso e
sua própria rebeldia.
E-mail: ccalligari@uol.com.br
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