São Paulo, sábado, 06 de janeiro de 2001

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WALTER SALLES

Uma visita ao set de Scorsese

"Cinema é uma doença. Penetra na corrente sanguínea, altera as enzimas. Como acontece com heroína, o antídoto para cinema é mais cinema."
Assim começa a série de documentários que Martin Scorsese fez sobre a história do cinema americano a convite do Instituto Britânico do Filme. A citação não é de Scorsese, e sim de Frank Capra, mas resume a relação visceral que o mais brilhante autor do cinema americano contemporâneo tem com a forma de expressão que escolheu.
O conhecimento enciclopédico que Scorsese tem do cinema transcende a América. Ele absorveu fragmentos do neo-realismo e da nouvelle vague, da vanguarda soviética e do cinema experimental. Scorsese também tem, atualmente, um papel fundamental na defesa e na preservação de filmes que marcaram a história do cinema mundial -como "Terra em Transe", de Glauber Rocha, cujos negativos foram recuperados por ele.
No carro que me conduz neste inverno romano até Cinecittà, onde Scorsese está rodando seu novo longa-metragem, "Gangues de Nova York", penso no quão determinantes foram os seus filmes para toda uma geração de espectadores e de jovens diretores: "Caminhos Perigosos", "Taxi Driver", "Touro Indomável", "O Rei da Comédia", "Os Bons Companheiros", "Cassino", entre tantos outros. Filmes que dissecam a América, que põem a nu tudo aquilo que pulsa abaixo da camada superficial dos néons.
Filho de imigrantes sicilianos que partiram para a América, Scorsese nasceu no bairro de Little Italy, em Nova York. Volta agora à Itália para realizar a sua obra mais complexa. A escolha de Cinecittà, o maior estúdio da Europa, se deu não só por razões econômicas, mas também artísticas -os diretores de arte e artesãos italianos são conhecidos pelo trabalho excepcional que executam.
Não é uma tarefa fácil. "Gangues" narra a história dos emigrantes italianos que chegaram a Nova York entre 1846 e 1873, confrontando-se com os outros grupos étnicos que já controlavam a cidade. O conflito resultante da guerra entre esses grupos fez de Nova York uma das cidades mais violentas do final do século 19. História de exclusão, mas também de acomodação e posterior cristalização de uma identidade nacional.
O cenário erguido por Dante Ferretti, antigo colaborador de Pasolini, é impressionante. Percorrendo o labirinto de ruas enlameadas e do porto nova-iorquino construídos em Cinecittà, tem-se a sensação de estar no set de um novo "O Nascimento de uma Nação", de D. W. Griffith.
O filme de Griffith, realizado em 1915, definiu a moderna gramática cinematográfica. O de Scorsese, o cineasta contemporâneo que mais expandiu a linguagem fílmica, pode justamente dar seguimento ao ciclo de obras fundamentais iniciado por Griffith.
Griffith colocou a nação americana na tela. Já Scorsese a questiona, driblando os estúdios, injetando um subtexto inquietante até em filmes feitos por encomenda, como "Cabo do Medo". A violência social, constitutiva dos Estados Unidos, fica exposta à visitação pública.
No estúdio cinco de Cinecittà, o preferido de Fellini, tive o privilégio de assistir a um daqueles planos-sequência que caracterizam a obra de Scorsese. Frente à câmera, o ator extraordinário que é Daniel Day-Lewis. Scorsese se aproxima, incita-o a improvisar, a ir além do texto definido pelo roteiro.
Pouco a pouco, Daniel Day-Lewis transforma-se em Billy, o Açougueiro. Ameaça um policial corrupto que diz querer se regenerar e deixar de perseguir os novos imigrantes italianos. Vai mais longe a cada tomada, ultrapassando as convenções do texto, oferecendo nuanças diferentes ao diretor.
De repente, um pequeno milagre se opera. É como se a equipe de mais de cem técnicos de "Gangues" deixasse de existir. Só vemos o ator, improvisando livremente, indo buscar inflexões cada vez mais inesperadas. Saltando sem rede, como se esperaria de um pequeno filme independente, feito sem recursos, com uma câmera digital.
Mais tarde, à noite, a filmagem se transfere para fora do estúdio. Michael Ballhaus, diretor de fotografia que colaborou intensamente com Fassbinder e é companheiro de Scorsese desde "Depois de Horas", ilumina um beco com rapidez. A chuva fina que começa a cair não é suficiente para atrapalhar a cena. Um grupo de jovens imigrantes italianos conduzidos por Leonardo DiCaprio vende o corpo de um homem morto a um outro grupo de rapazes, de classe social visivelmente mais alta. Pouco é dito. Tudo é seco e cortante.
É em momentos como esse que a cinefilia de Scorsese faz a diferença. Como nos westerns de Anthony Mann, os seus heróis e bandidos são complementares. Dividem a mesma solidão, os mesmos sonhos e, às vezes, os mesmos códigos morais. A exemplo do que acontece em "Força do Mal", de A. Polonsky, outro filme-referência de Scorsese, é a sociedade inteira que é corrupta. A violência do sistema é maior do que a violência individual. E como em "Pacto de Sangue", de Billy Wilder, e em "Almas Perversas", de Fritz Lang, todo homem não é só uma vítima, mas também um assassino em potencial. Durma-se com esse incômodo.
Os personagens de Scorsese talvez nos convidem ao purgatório, mas ficarão conosco para sempre, enquanto outros desaparecerão. É a herança deixada por um realizador que acredita que o cinema pode preencher o desejo que as pessoas têm de dividir uma memória coletiva -por mais dura que seja.
Mais tarde, de volta ao Brasil. Abro um livro, encontro uma referência de Scorsese à obra de Glauber Rocha. É tão aguda e luminosa que não resisto à tentação de transcrevê-la: "Os filmes de Glauber Rocha são uma irrupção no mundo do mal, uma explosão provocada por uma reação química onde se misturam o sangue e o celulóide. Ele criou uma tapeçaria frenética da dor, da raiva e do sofrimento que ele tinha observado à sua volta. Os seus filmes são provocantes, no melhor sentido da palavra: provocam no espectador um enriquecimento da consciência".
Essa citação é tão reveladora da obra de Glauber Rocha quanto da de Scorsese. Mostra o olhar de quem nunca perdeu a curiosidade e o interesse pelo outro. Ou a generosidade. Matérias-primas que tornam os filmes de Scorsese, por sua vez, inesquecíveis.



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