São Paulo, terça-feira, 06 de janeiro de 2004

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Salvação pelo samba


Em um país onde violência e pobreza são problemas corriqueiros, pode a arte ajudar a enfrentá-los e combatê-los?


NIGEL ANDREWS
DO "FINANCIAL TIMES"

Estou em uma escola de samba às 2h, e meus ouvidos vão sofrer um colapso. Enquanto a banda atinge os mil decibéis, no palco, um redemoinho de mulheres vestidas de maneira insana, com caudas de pavão iridescentes e umbigos nus, gira e requebra pelo chão.
Samba é a motivação essencial do lugar, me dizem os brasileiros, e quase acredito neles. É uma invenção de Deus para manter unida uma sociedade desconexa. O único problema é que esse adesivo funciona melhor, ou mesmo exclusivamente, à noite, o que deixa o Brasil enfrentando, a cada alvorada, os mesmos velhos problemas e crises sociais, aqueles que afligem um país subdesenvolvido tentando manter a sanidade, a união e, acima de tudo, tentando se manter vivo.
Nesse momento da História, há duas questões urgentes, que encontram seu foco mais vívido no Rio. Será que essa cidade, a jóia na amarfanhada coroa brasileira, é capaz de deter a desintegração social aparentemente inexorável, enquanto as facções se enfrentam em guerra sem fim? Quadrilhas de traficantes de drogas versus quadrilhas de traficantes de drogas; traficantes versus policiais; policiais versus aparentemente todo mundo. E será que a cultura, o último bote salva-vidas dos idealistas, pode sair em auxílio de uma comunidade para que esta reencontre sua identidade e meios de sobreviver? A intoxicante cultura popular do samba é uma coisa. Mas e quanto ao entretenimento frio e combativo das artes, do teatro e como no festival do qual participo, do cinema?
Sim, é uma cidade em crise. Mas como me diz o presidente da Comissão de Cinema do Rio e ex-astro cinematográfico José Wilker, do outro lado de uma mesa do bar à beira da piscina do hotel Copacabana Palace, "nós precisamos estar em crise. É essa a nossa maneira de fazer as coisas. Quando estamos em crise, estamos vivos, estamos tentando descobrir uma maneira de resolver a situação".

"E Mickey Mouse também está no Rio. Numa esquálida favela, um homem usando a multicolorida fantasia do camundongo recebe e cumprimenta as crianças, animadas"

E Mickey Mouse também está no Rio. Numa esquálida favela, um homem usando a multicolorida fantasia do camundongo recebe e cumprimenta as crianças, animadas. Elas tinham acabado de assistir a uma seleção de velhos curtas-metragens do Mickey, e agora estavam na companhia da lenda em pessoa, subindo ao palco duas a duas para cumprimentá-lo.
Um colega cínico, à minha esquerda, murmura "imperialismo cultural". Um cínico à direita dele -eu- fica imaginando se estávamos assistindo à cerimônia da pedra fundamental da Disneylândia Rio. Mas é difícil evitar a emoção ao ver esses meninos do Terceiro Mundo radiantes diante da chance de apertar a pata de um ícone do Primeiro Mundo.

Pão e circo
Esse é um exemplo do novo Rio tentando abrilhantar e enriquecer as vidas dos pobres. A reforma social não pára, ou não devia parar, no programa Fome Zero, promovido pelo novo governo socialista do Brasil, que promete três refeições ao dia para todas as famílias, sob o comando do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. O favelado não pode viver só de comida. Depois do pão, ou com ele, é preciso que venha o circo.
Levar arte às comunidades miseráveis é uma idéia maravilhosa, se funcionar. Mas funciona?
Na metade dos anos 90, Ricardo Macieira, hoje secretário da Cultura do Rio, ganhou um prêmio da União Européia pelo melhor projeto social da América Latina. O nome do plano era Lonas Culturais, e a idéia era simples e inspirada. Macieira propôs que as barracas descartadas depois da Conferência Eco 92, no Rio, enormes tendas com múltiplos compartimentos abandonadas em um depósito mal cuidado em um parque à beira-mar, fossem distribuídas a regiões pobres da cidade para uso como centros de arte pré-fabricados.
"Cultura como instrumento de mudança social", era o subtítulo do projeto, que foi realizado. "É muito importante transformar o espaço urbano", diz o jovem e audacioso Macieira.
Integrar o povo é bom, admito. Mas será que alguém estará vivo para participar da integração? Nós, estrangeiros, temos a idéia, com base nos jornais, TV e filmes como "Cidade de Deus", que fez sucesso internacionalmente, de que as favelas estão inexoravelmente no caminho da autodestruição.
"Existe violência, lá, mas ela é exagerada no cinema, por que os diretores querem tornar a narrativa mais interessante. (...) A violência real não é melhor, ou pior. Apenas diferente. Às vezes pior, porque aparentemente não tem motivo, ou padrão", diz Macieira.
A cultura pode ser a resposta, ou parte dela, acredita Macieira. "É a única atividade em que a violência não penetra. Nos esportes, é possível haver violência. Mas a arte é uma celebração. (...) Ninguém está lutando, competindo, para vencer. Tudo gira em torno da harmonia e da comunidade."
As ondas culturais já estão reduzindo o crime relacionado às drogas. Estatísticas otimistas são alardeadas pelo homem encarregado de uma das tendas culturais, no subúrbio distante. Os meninos locais que abandonaram a escola frequentam o centro, deixando de lado a guerra entre quadrilhas, o vício da cola e coisas ainda piores.

Da favela ao cinema
Nem sempre são necessários projetos para ajudar os necessitados. Um milagre de reforma semelhante aconteceu, sem legislação, durante e depois da produção de "Cidade de Deus". Jovens das favelas foram recrutados e ensaiados por meses, sob a direção de Fernando Meirelles, criando uma espécie de companhia informal de teatro, e muitos deles continuaram na profissão.
Douglas Silva e Darlan Cunha interpretaram papéis de destaque no filme. Ao que parece, é possível não só tirar os meninos da favela mas tirar a favela dos meninos. Confiantes e articulados, deram entrevistas a jornalistas estrangeiros.
O homem por trás do filme é britânico. Donald Rainvaud abandonou a crítica de cinema em Londres 15 anos atrás e se tornou produtor internacional. Depois de produzir "Adeus Minha Concubina" na China, veio ao Brasil trabalhar como produtor executivo em "Central do Brasil" e "Cidade de Deus".
"Você simplesmente se apaixona pelo lugar. É incrível", diz ele ao nos encontrarmos em um bar de Copacabana. Rainvaud também se apaixonou pela idéia de ressuscitar o cinema brasileiro e revitalizá-lo como voz no debate social do país. No começo dos anos 90, com o colapso completo dos subsídios do Estado, o Brasil mal completava três filmes por ano.
O último cinema popular brasileiro foi o Cinema Novo, mundialmente famoso. Nos anos 70, diretores como Ruy Guerra e Glauber Rocha levaram a propaganda política às telas brasileiras. Não era exatamente cultura para o povo ou sequer cultura do povo, já que os principais diretores tinham diplomas universitários, mas o Cinema Novo conseguiu sucesso brilhante, em duas frentes. Usou a arte para chamar a atenção do mundo para a tragédia social do Brasil, que vivia então sob ditadura militar, e fez dos excluídos os heróis e heroínas da história do país.
Rainvaud e o diretor Meirelles tornaram os excluídos "astros" dessa história. Como me disse Meirelles quando "Cidade de Deus" foi ovacionado em Cannes, "escolhemos 200 atores entre 2.000 candidatos, todos das favelas, e trabalhamos com eles por quase um ano". "Cidade de Deus" fez grande sucesso em todo o mundo. Meirelles foi comparado a Scorsese. O único problema é que o filme transformou o cinema brasileiro em sinônimo de uma coisa apenas: inferno urbano.
Carlos Diegues, um dos leões do velho Cinema Novo e presidente do júri do Festival do Rio este ano, me diz que o Brasil já percorreu esse caminho no passado. Na era dele, igualmente, um país era identificado com um único tema e estilo, cinematograficamente. Hoje, com a produção cinematográfica doméstica gerando até 40 filmes ao ano, ele acredita que seja importante dizer que o "cinema brasileiro deixou de ser um gênero, e se tornou uma cinematografia nacional".
Os filmes brasileiros são mais diversificados que nunca, talvez beneficiários de um cinema defensor da liberdade, nos anos 70, que lutou por dar poder a um povo e uma forma de arte. "Nosso programa era simples. Primeiro, mudar a história do cinema. Depois, mudar a história do Brasil. A seguir, quem sabe, a do planeta!", diz Diegues.
Agora, ele e seus colegas têm um presidente socialista, um cinema nacional para o povo se pudermos julgar com base em uma estatística de mercado que fala em 20% dos espectadores brasileiros pagando para ver filmes nacionais, e favelas no Rio se esforçando por salvação via cultura comunitária e promoção de carreiras no cinema.
Mas nesse ponto um observador atento fará uma pausa. Avanços demais, rápido demais. A utopia ainda não chegou. E na opinião de muitos, apesar das lonas culturais e dos messias do cinema pregando a salvação das favelas, mal começou.
José Padilha, um cineasta quase tão quente quanto Meirelles depois de "Ônibus 174", filme que mostra o sequestro real de um ônibus no Rio por um viciado em drogas armado, diz que o Brasil continua a ser uma sociedade dividida e violenta. Para cada delinquente salvo pela cultura, há cem que não se salvarão. "Minha tese no filme é a de que o Estado é responsável, pelo tratamento que dá às crianças de rua, aos prisioneiros, pelas instalações horríveis que mantém para os jovens infratores". Nas ruas e nas favelas, diz ele, o principal responsável pela violência e pela quebra da coesão social é a polícia.
E onde fica a "cultura como instrumento da mudança social", com isso? Fica, pode-se alegar, em posição tão forte quanto sempre ocupou, se a palavra "cultura" for ampliada para incluir não só as lonas culturais e o Mickey abraçando crianças, não só os afortunados escolhidos na favela para carreiras no cinema, mas também os filmes e documentários apaixonados que levam aos espectadores um argumento estruturado em favor da indignação social e da reforma.
As tragédias no Rio são muitas. Mas a maravilha, como diz Donald Rainvaud, é que não se apaixonar pela cidade é impossível. De sua paisagem fantástica à vitalidade borbulhante de seus moradores, a cidade nos faz sentir que tentativas de "ajudar" talvez sejam mal dirigidas, na melhor das hipóteses, e paternalistas, na pior (o que não significa que não devam ser empreendidas). Os horrores do Rio exibem, em si, paixão e uma desesperada exuberância. Os crimes da cidade parecem ser uma resposta quase legítima, o terrível como consequência do terrível. E até as favelas exibem um insano senso de justiça.
O cineasta finlandês Mika Kaurismaki adora samba, e produziu todo um documentário a respeito, "Moro no Brasil".
Ele diz que o lugar do samba na vida brasileira em meio ao massacre e à anarquia é primário, incalculável e que, na opinião dele, o samba tem poder de cura. "É um elemento social, um elemento de integração, quase um kit de sobrevivência." Os ingredientes multirraciais simbolizam e existem em harmonia com o multirracialismo do Brasil.
Encontrei muitos significados e manifestações da "cultura para o povo" durante minha semana no Rio. Mas talvez essa noite de samba, animadora e admoestatória, brasileira até a alma, seja aquilo que levarei comigo de volta para o Reino Unido, para guardar na mente e na memória.

Nigel Andrews é crítico de cinema do "Financial Times"

Tradução de Paulo Migliacci


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