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LIVRO CRÍTICA
Prosa de Harold Brodkey é puro orgasmo
BERNARDO CARVALHO
especial para a Folha
O que Harold Brodkey (1930-1996) dizia não se escreve. Em 88,
numa entrevista ao jornal "Libération", o autor de "Quatro Histórias
ao Modo Quase Clássico" declarou
na caradura: "O romance "Pnin"
(de Nabokov) é a imitação de meus
contos. E Nabokov também chamou de Harold o herói de "Lolita",
o que foi muito gentil da parte dele". Na realidade, o herói de "Lolita" se chama Humbert Humbert.
Depois de uma declaração dessas, o mais hilariante é pensar que
boa parte da obra de Brodkey seja
aparentemente "autobiográfica".
Desde o conto central ("Uma História ao Modo Quase Clássico")
dessa coletânea finalmente traduzida no Brasil até o célebre diário
do final da vida do escritor, em que
ele revela que tinha Aids e provavelmente havia sido contaminado
mais de 20 anos antes de a doença
se manifestar.
Brodkey se tornou uma figura
lendária do mundo intelectual nova-iorquino graças em grande parte a suas aparições na revista "The
New Yorker", em que a maioria de
seus contos foi publicada originalmente e cuja equipe editorial ele
chegou a integrar. Dedicou 30 anos
a um ambicioso projeto de romance ("The Runaway Soul") que se
tornou um mito muito antes de ser
publicado em 91.
Os textos de "Quatro Histórias
ao Modo Quase Clássico", livro
lançado nos Estados Unidos em
88, 30 anos depois de sua primeira
coletânea de contos ("Primeiro
Amor e Outros Lamentos"), só fazem confirmar a originalidade
desse contador de histórias. Todo
o segredo está contido nesse irônico "quase" do título.
A maior invenção de Brodkey
dentro da tradição confessional da
literatura americana, que costuma
dar prioridade aos "relatos de experiência", está na intensidade de
suas obsessões. Sua originalidade é
reinventar radicalmente a experiência, tamanha é a intensidade
com que a descreve.
Hoje, boa parte da ficção americana -e dos estudos literários nos
Estados Unidos- quer fazer da literatura a expressão de uma experiência real (de vida, de uma minoria, de uma raça etc.). Brodkey leva
essa lógica às raias da loucura, até
tornar a própria experiência literatura; até mostrar que, em literatura
de verdade, a experiência será
sempre imaginação.
Nem por isso suas histórias são
menos emocionantes. Sua escrita é
tão obsessiva que ele é capaz de
desdobrar um conto inteiro ("Inocência"), páginas e mais páginas,
numa descrição barroca e infinita
apenas para exprimir a teimosia de
um homem tentando fazer uma
mulher chegar ao orgasmo. E é
quando a idéia da literatura como
expressão de uma experiência real
se dissolve no que ela realmente é:
invenção.
A maneira de Brodkey escapar
do lugar-comum da literatura como expressão foi buscando junto
às pulsões sexuais mais radicalizadas uma forma literária que fosse
ao mesmo tempo verdadeira e original. Na segunda história ("Brincadeira"), o autor lança mão mais
uma vez dessa prosa líquida, que
escorre para todos os lados, para
descrever um único instante: a primeira manifestação mais direta e
imediata do prazer sexual, a primeira ejaculação, durante uma
inocente brincadeira de crianças.
No geral, essas brincadeiras descritas pelo autor são descaradamente sado-masoquistas (Brodkey chama as crianças de "pequenas putas"), confundindo prazer e
dor, assim como raiva e culpa se
misturam na descrição da mãe
moribunda, no conto que inspira o
título da coletânea. Nesse caso, a
obsessão leva o narrador a se confundir com a própria mãe, a tomar
o lugar da mãe e, por uma imaginação transgressora, tornar sua a
experiência de uma mulher de
meia-idade à beira da morte.
Os contos de "Quatro Histórias
ao Modo Quase Clássico" são pequenos "tour de force" em torno
de instantes de uma intensidade
muito forte. O texto gira, escorre,
desdobra-se e dobra sobre si mesmo, mas não avança. São contos
inteiros para descrever uma mesma sensação, uma experiência levada a um estado tão mínimo, tão
essencial, pela obsessão descritiva,
que ela deixa de ser expressão para
se tornar criação. A originalidade
da prosa de Brodkey é que ele escreve como se o próprio texto fosse
orgasmo, ejaculação, e não a sua
mera expressão ou lembrança.
Livro: Quatro Histórias ao Modo Quase
Clássico
Autor: Harold Brodkey
Tradutor: Ruy Vasconcelos
Lançamento: Imago
Quanto: R$ 18 (176 págs.)
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