São Paulo, Sábado, 06 de Fevereiro de 1999
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LIVRO CRÍTICA
Prosa de Harold Brodkey é puro orgasmo

BERNARDO CARVALHO
especial para a Folha

O que Harold Brodkey (1930-1996) dizia não se escreve. Em 88, numa entrevista ao jornal "Libération", o autor de "Quatro Histórias ao Modo Quase Clássico" declarou na caradura: "O romance "Pnin" (de Nabokov) é a imitação de meus contos. E Nabokov também chamou de Harold o herói de "Lolita", o que foi muito gentil da parte dele". Na realidade, o herói de "Lolita" se chama Humbert Humbert.
Depois de uma declaração dessas, o mais hilariante é pensar que boa parte da obra de Brodkey seja aparentemente "autobiográfica". Desde o conto central ("Uma História ao Modo Quase Clássico") dessa coletânea finalmente traduzida no Brasil até o célebre diário do final da vida do escritor, em que ele revela que tinha Aids e provavelmente havia sido contaminado mais de 20 anos antes de a doença se manifestar.
Brodkey se tornou uma figura lendária do mundo intelectual nova-iorquino graças em grande parte a suas aparições na revista "The New Yorker", em que a maioria de seus contos foi publicada originalmente e cuja equipe editorial ele chegou a integrar. Dedicou 30 anos a um ambicioso projeto de romance ("The Runaway Soul") que se tornou um mito muito antes de ser publicado em 91.
Os textos de "Quatro Histórias ao Modo Quase Clássico", livro lançado nos Estados Unidos em 88, 30 anos depois de sua primeira coletânea de contos ("Primeiro Amor e Outros Lamentos"), só fazem confirmar a originalidade desse contador de histórias. Todo o segredo está contido nesse irônico "quase" do título.
A maior invenção de Brodkey dentro da tradição confessional da literatura americana, que costuma dar prioridade aos "relatos de experiência", está na intensidade de suas obsessões. Sua originalidade é reinventar radicalmente a experiência, tamanha é a intensidade com que a descreve.
Hoje, boa parte da ficção americana -e dos estudos literários nos Estados Unidos- quer fazer da literatura a expressão de uma experiência real (de vida, de uma minoria, de uma raça etc.). Brodkey leva essa lógica às raias da loucura, até tornar a própria experiência literatura; até mostrar que, em literatura de verdade, a experiência será sempre imaginação.
Nem por isso suas histórias são menos emocionantes. Sua escrita é tão obsessiva que ele é capaz de desdobrar um conto inteiro ("Inocência"), páginas e mais páginas, numa descrição barroca e infinita apenas para exprimir a teimosia de um homem tentando fazer uma mulher chegar ao orgasmo. E é quando a idéia da literatura como expressão de uma experiência real se dissolve no que ela realmente é: invenção.
A maneira de Brodkey escapar do lugar-comum da literatura como expressão foi buscando junto às pulsões sexuais mais radicalizadas uma forma literária que fosse ao mesmo tempo verdadeira e original. Na segunda história ("Brincadeira"), o autor lança mão mais uma vez dessa prosa líquida, que escorre para todos os lados, para descrever um único instante: a primeira manifestação mais direta e imediata do prazer sexual, a primeira ejaculação, durante uma inocente brincadeira de crianças.
No geral, essas brincadeiras descritas pelo autor são descaradamente sado-masoquistas (Brodkey chama as crianças de "pequenas putas"), confundindo prazer e dor, assim como raiva e culpa se misturam na descrição da mãe moribunda, no conto que inspira o título da coletânea. Nesse caso, a obsessão leva o narrador a se confundir com a própria mãe, a tomar o lugar da mãe e, por uma imaginação transgressora, tornar sua a experiência de uma mulher de meia-idade à beira da morte.
Os contos de "Quatro Histórias ao Modo Quase Clássico" são pequenos "tour de force" em torno de instantes de uma intensidade muito forte. O texto gira, escorre, desdobra-se e dobra sobre si mesmo, mas não avança. São contos inteiros para descrever uma mesma sensação, uma experiência levada a um estado tão mínimo, tão essencial, pela obsessão descritiva, que ela deixa de ser expressão para se tornar criação. A originalidade da prosa de Brodkey é que ele escreve como se o próprio texto fosse orgasmo, ejaculação, e não a sua mera expressão ou lembrança.

Livro: Quatro Histórias ao Modo Quase Clássico
Autor: Harold Brodkey
Tradutor: Ruy Vasconcelos
Lançamento: Imago
Quanto: R$ 18 (176 págs.)



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