São Paulo, segunda-feira, 06 de março de 2000


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FERNANDO GABEIRA

Notícias da minha guerra particular

Imagine um jovem cineasta, filho de família rica e tradicional, encontrando-se com um traficante no morro Dona Marta. Imagine esse jovem dando uma bolsa de R$ 1.200 para que o traficante deixasse o crime e produzisse um livro sobre sua experiência. Finalmente, imagine essa história vindo à tona em manchete de jornal e em imagens de TV.
Dá uma boa festa multidisciplinar, um pré-Carnaval para sociólogos, antropólogos, psicanalistas e, por que não, deputados?
Casos idênticos foram consagrados pela arte como altos momentos na relação entre seres humanos. Duas pessoas se encontram, conversam, trabalham, se olham no olho e, independentemente de seus preconceitos e origens sociais, se ajudam em situações limites. Teatro, cinema e literatura estão cheios de encontros assim, numa cadeia, num elevador em pane, numa trincheira de guerra.
Nesse sentido, o encontro de João Moreira Salles com o traficante Marcinho VP é um bonito momento do qual os envolvidos podem se orgulhar, pois foram capazes de olhar um pouco mais adiante de suas classes, de seus cotidianos, de seus horizontes ideológicos e reconhecer o outro com suas diferenças e com os traços essenciais que constituem uma pessoa. Hannah Arendt, autora do livro "Homens em Tempos Sombrios", entre outros, recusava um pouco a idéia de que fomos feitos para a morte, pois achava que fomos feitos para um incessante recomeço.
Se o encontro de João Salles e Marcinho VP constitui um momento sublime para a arte, preocupada com indivíduos em situações dramáticas, a qualidade do texto fica um pouco comprometida quando se passa para a interpretação teórica. Isso porque a teoria tenta transformar o encontro num ato simbólico e universalizá-lo como uma forma mais correta, por meio da qual as classes dominantes deveriam encarar o crime, os pobres e tudo mais.
A interpretação abre flancos para questionamentos. Por que uma bolsa para Marcinho? Por que não usar o mesmo dinheiro para colocar crianças na escola ou cuidar das vítimas do crime?
Instala-se uma discussão do gênero "orçamento participativo", que o PT comanda tão bem nas suas administrações, com a diferença de que o debate público não enfoca mais o dinheiro de impostos, mas o que fazer com os excedentes da família Salles, algo que no contexto democrático está fora do nosso alcance.
Essa confusão toda deu notícias de minha guerra particular. Tanto Salles, em algumas insinuações, como Marcinho, explicitamente, manifestam um certo desprezo pelos consumidores de droga da classe média, cúmplices da criminalidade que domina os morros. A tese é entusiasticamente abraçada por um setor da inteligência nacional do qual não faço parte, talvez porque já tenha perdido os neurônios necessários para pertencer a essa elite.
O raciocínio é simples. O mundo do tráfico de drogas é um mundo de assassinatos, torturas e massacres. O tráfico é mantido pelos consumidores, logo os consumidores são cúmplices dessas atrocidades.
Sociedades mais generosas costumam se perguntar porque existe e prospera o consumo de drogas, na presunção de que é preciso pelo menos entender as causas. Nossa inteligência, nesse movimento mágico, coloca a sociedade num pedestal de pureza e inocência porque demonstra que o consumo de droga existe porque existem consumidores.
Todo esse aparato editorial serve para mascarar o fato de que a maioria dos brasileiros opta pela política repressiva, mas não quer se responsabilizar por suas consequências. Essa política, sim, pode ser acusada no lugar dos consumidores que estão apenas se defendendo de uma intrusão indevida do Estado na relação que têm com o próprio corpo. O que provoca as mortes é a ilegalidade. Os consumidores de vodca, gim, uísque ou cerveja não são acusados de nada porque no comércio de vodca, cerveja ou uísque as fusões não são resolvidas a tiro nem a partilha do mercado é definida com ataques armados ao território do inimigo.
Consumidores de uísque e consumidores de cocaína são igualmente consumidores de droga. O que difere uma da outra, nesse ponto de vista, é a legalidade. Ao decretar a clandestinidade dessa atividade humana, uma decisão moral que eu respeito, mas acho equivocada, a maioria decreta também a violência como condição essencial de sua sobrevivência.
A Comissão do Narcotráfico prende e algema diante das câmeras e nos dá a tranquila esperança de que o tráfico de drogas irá se dissolver assim, com os cabeças se apresentando para depor e saindo algemados, a tempo de aparecerem no "Jornal Nacional".
Recentemente, a operação Mandacaru queimou toneladas de maconha. Numa reunião sobre o rio São Francisco, deputados informaram que a maconha já volta a crescer nas margens do rio -está mais forte e vistosa do que antes. Em 525 d.C., no Cairo, já se faziam grandes queimadas de maconha.
Essa conjunção de espetáculos, CPI algemando traficantes que se apresentam de gravata, toneladas de maconha ardendo nas margens do rio da unidade nacional, a degradação pela teoria de um encontro de dois seres humanos -tudo isso é parte de uma escolha nacional.
Enquanto se discute qual a melhor maneira de recuperar Marcinho VP -dando uma bolsa de estudos ou prendendo e esfolando-, possivelmente de cuecas e com uma cervejinha na mão, Zacarias assume o controle do tráfico no morro Dona Marta.
Poucas pessoas sabem que há mais candidatos a traficantes do que espaço no mercado e que essa incessante e gigantesca máquina não será detonada com repressão policial e jeremiadas para culpar consumidores. A máquina se alimenta de muita grana e mói em pedacinhos as melhores lições de moral. Ela só será derrotada com uma política nova e audaciosa -a legalização.


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