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FERNANDO GABEIRA
Notícias da minha guerra particular
Imagine um jovem cineasta, filho de família rica e tradicional,
encontrando-se com um traficante no morro Dona Marta. Imagine esse jovem dando uma bolsa de
R$ 1.200 para que o traficante deixasse o crime e produzisse um livro sobre sua experiência. Finalmente, imagine essa história vindo à tona em manchete de jornal
e em imagens de TV.
Dá uma boa festa multidisciplinar, um pré-Carnaval para sociólogos, antropólogos, psicanalistas
e, por que não, deputados?
Casos idênticos foram consagrados pela arte como altos momentos na relação entre seres humanos. Duas pessoas se encontram,
conversam, trabalham, se olham
no olho e, independentemente de
seus preconceitos e origens sociais,
se ajudam em situações limites.
Teatro, cinema e literatura estão
cheios de encontros assim, numa
cadeia, num elevador em pane,
numa trincheira de guerra.
Nesse sentido, o encontro de
João Moreira Salles com o traficante Marcinho VP é um bonito
momento do qual os envolvidos
podem se orgulhar, pois foram capazes de olhar um pouco mais
adiante de suas classes, de seus cotidianos, de seus horizontes ideológicos e reconhecer o outro com
suas diferenças e com os traços essenciais que constituem uma pessoa. Hannah Arendt, autora do livro "Homens em Tempos Sombrios", entre outros, recusava um
pouco a idéia de que fomos feitos
para a morte, pois achava que fomos feitos para um incessante recomeço.
Se o encontro de João Salles e
Marcinho VP constitui um momento sublime para a arte, preocupada com indivíduos em situações dramáticas, a qualidade do
texto fica um pouco comprometida quando se passa para a interpretação teórica. Isso porque a
teoria tenta transformar o encontro num ato simbólico e universalizá-lo como uma forma mais correta, por meio da qual as classes
dominantes deveriam encarar o
crime, os pobres e tudo mais.
A interpretação abre flancos para questionamentos. Por que uma
bolsa para Marcinho? Por que
não usar o mesmo dinheiro para
colocar crianças na escola ou cuidar das vítimas do crime?
Instala-se uma discussão do gênero "orçamento participativo",
que o PT comanda tão bem nas
suas administrações, com a diferença de que o debate público não
enfoca mais o dinheiro de impostos, mas o que fazer com os excedentes da família Salles, algo que
no contexto democrático está fora
do nosso alcance.
Essa confusão toda deu notícias
de minha guerra particular. Tanto Salles, em algumas insinuações,
como Marcinho, explicitamente,
manifestam um certo desprezo
pelos consumidores de droga da
classe média, cúmplices da criminalidade que domina os morros.
A tese é entusiasticamente abraçada por um setor da inteligência
nacional do qual não faço parte,
talvez porque já tenha perdido os
neurônios necessários para pertencer a essa elite.
O raciocínio é simples. O mundo
do tráfico de drogas é um mundo
de assassinatos, torturas e massacres. O tráfico é mantido pelos
consumidores, logo os consumidores são cúmplices dessas atrocidades.
Sociedades mais generosas costumam se perguntar porque existe e prospera o consumo de drogas, na presunção de que é preciso
pelo menos entender as causas.
Nossa inteligência, nesse movimento mágico, coloca a sociedade
num pedestal de pureza e inocência porque demonstra que o consumo de droga existe porque existem consumidores.
Todo esse aparato editorial serve para mascarar o fato de que a
maioria dos brasileiros opta pela
política repressiva, mas não quer
se responsabilizar por suas consequências. Essa política, sim, pode
ser acusada no lugar dos consumidores que estão apenas se defendendo de uma intrusão indevida do Estado na relação que têm
com o próprio corpo. O que provoca as mortes é a ilegalidade. Os
consumidores de vodca, gim, uísque ou cerveja não são acusados
de nada porque no comércio de
vodca, cerveja ou uísque as fusões
não são resolvidas a tiro nem a
partilha do mercado é definida
com ataques armados ao território do inimigo.
Consumidores de uísque e consumidores de cocaína são igualmente consumidores de droga. O
que difere uma da outra, nesse
ponto de vista, é a legalidade. Ao
decretar a clandestinidade dessa
atividade humana, uma decisão
moral que eu respeito, mas acho
equivocada, a maioria decreta
também a violência como condição essencial de sua sobrevivência.
A Comissão do Narcotráfico
prende e algema diante das câmeras e nos dá a tranquila esperança
de que o tráfico de drogas irá se
dissolver assim, com os cabeças se
apresentando para depor e saindo
algemados, a tempo de aparecerem no "Jornal Nacional".
Recentemente, a operação
Mandacaru queimou toneladas
de maconha. Numa reunião sobre
o rio São Francisco, deputados informaram que a maconha já volta a crescer nas margens do rio
-está mais forte e vistosa do que
antes. Em 525 d.C., no Cairo, já se
faziam grandes queimadas de
maconha.
Essa conjunção de espetáculos,
CPI algemando traficantes que se
apresentam de gravata, toneladas
de maconha ardendo nas margens do rio da unidade nacional,
a degradação pela teoria de um
encontro de dois seres humanos
-tudo isso é parte de uma escolha nacional.
Enquanto se discute qual a melhor maneira de recuperar Marcinho VP -dando uma bolsa de estudos ou prendendo e esfolando-, possivelmente de cuecas e
com uma cervejinha na mão, Zacarias assume o controle do tráfico no morro Dona Marta.
Poucas pessoas sabem que há
mais candidatos a traficantes do
que espaço no mercado e que essa
incessante e gigantesca máquina
não será detonada com repressão
policial e jeremiadas para culpar
consumidores. A máquina se alimenta de muita grana e mói em
pedacinhos as melhores lições de
moral. Ela só será derrotada com
uma política nova e audaciosa
-a legalização.
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