São Paulo, segunda-feira, 06 de março de 2000


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TELEVISÃO

Segundo episódio da série é exibido hoje no Eurochannel

Godard é um guerrilheiro das "História(s) do Cinema"

INÁCIO ARAUJO
Crítico de Cinema

Ninguém espere que, com "História(s) do Cinema" (Eurochannel, hoje às 20h30), Jean-Luc Godard abandone seu gosto pela ambiguidade. Já o título dá uma idéia disso: história ou histórias? É possível existir uma só história, ou o cinema é uma experiência adquirida ao longo de muitas histórias?
Ninguém espere, igualmente, por certezas. Godard é um cineasta da indagação. Por isso, perguntará o que é o cinema: "indústria da evasão ou lugar da memória"? Mas o que é evasão? O que é memória? O que guardam os fotogramas?
Godard não é um cineasta da comunicação. A comunicação não é seu campo. É um pouco como um Chacrinha erudito, que viesse mais para confundir do que para explicar.
Por que então parecem tão necessários os oito episódios dessa série que o Eurochannel mostrará em março e abril? Em primeiro lugar, por isso mesmo: neste mundo de comunicação ampla e fácil, onde todos se entendem com todos, algo existe de evidentemente errado. Nada muito fácil vale a pena. A própria informação, abundante demais, vira desinformação.
Godard não aceita isso, está claro. Fala do cinema, do passado, mas esse passado não está lá, mumificado. É vivo e capaz de nos surpreender a cada instante. Veja, por exemplo, a cena de "Duelo ao Sol", de King Vidor, com a música de "Um Corpo Que Cai", de Hitchcock. Suspense no Oeste. King Hitch.
Raras vezes se vê uma só imagem ou escuta-se um só som. Como se surgissem inquietas na memória de Godard, as imagens surgem, disseminam-se, subvertem-se, são invadidas por palavras, palavras que compõem jogos de palavras, músicas e ruídos que afogam a narração por alguns instantes.
Tudo isso parece sugerir uma série para professores da ECA, especialistas especializadíssimos. Nada disso.
Mesmo o espectador para quem os nomes de filmes ou os fotogramas que explodem na tela não signifiquem nada poderá se entregar agradavelmente à montagem que Godard propõe. Claro, não alguém que busque a evasão pura e simples.
Mas basta ter noção da beleza para entrar nessas histórias, tão espantosos são os efeitos que Godard arranca das superposições de imagens, da organização da banda sonora, das palavras do narrador que se escondem sob ruídos.
Mas não é de um exercício meramente formal que se trata. Godard evoca e amplifica a célebre máxima de um dos irmãos Lumière: o cinema é uma arte sem futuro. Portanto, do presente. Uma arte que tira mais do mundo do que dá.
Talvez seja esse o fundamento dessas "História(s)". Ao contrário das outras artes, o cinema é um ladrão do mundo: ele não cria, e sim retira coisas do mundo e as acondiciona.
As histórias que Godard conta são, hoje, as de um guerrilheiro para quem o cinema falhou na missão de organizar o olhar. São estilhaços de uma possível arte que reivindicam, ainda, sua presença num presente em que a indústria da evasão ganhou, claramente, a batalha.




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