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TELEVISÃO
Segundo episódio da série é exibido hoje no Eurochannel
Godard é um guerrilheiro das "História(s) do Cinema"
INÁCIO ARAUJO
Crítico de Cinema
Ninguém espere que, com
"História(s) do Cinema" (Eurochannel, hoje às 20h30), Jean-Luc Godard abandone seu gosto
pela ambiguidade. Já o título dá
uma idéia disso: história ou histórias? É possível existir uma só
história, ou o cinema é uma experiência adquirida ao longo de
muitas histórias?
Ninguém espere, igualmente,
por certezas. Godard é um cineasta da indagação. Por isso,
perguntará o que é o cinema:
"indústria da evasão ou lugar da
memória"? Mas o que é evasão?
O que é memória? O que guardam os fotogramas?
Godard não é um cineasta da
comunicação. A comunicação
não é seu campo. É um pouco
como um Chacrinha erudito,
que viesse mais para confundir
do que para explicar.
Por que então parecem tão necessários os oito episódios dessa
série que o Eurochannel mostrará em março e abril? Em primeiro lugar, por isso mesmo:
neste mundo de comunicação
ampla e fácil, onde todos se entendem com todos, algo existe
de evidentemente errado. Nada
muito fácil vale a pena. A própria informação, abundante demais, vira desinformação.
Godard não aceita isso, está
claro. Fala do cinema, do passado, mas esse passado não está lá,
mumificado. É vivo e capaz de
nos surpreender a cada instante.
Veja, por exemplo, a cena de
"Duelo ao Sol", de King Vidor,
com a música de "Um Corpo
Que Cai", de Hitchcock. Suspense no Oeste. King Hitch.
Raras vezes se vê uma só imagem ou escuta-se um só som.
Como se surgissem inquietas na
memória de Godard, as imagens surgem, disseminam-se,
subvertem-se, são invadidas
por palavras, palavras que compõem jogos de palavras, músicas e ruídos que afogam a narração por alguns instantes.
Tudo isso parece sugerir uma
série para professores da ECA,
especialistas especializadíssimos. Nada disso.
Mesmo o espectador para
quem os nomes de filmes ou os
fotogramas que explodem na
tela não signifiquem nada poderá se entregar agradavelmente à
montagem que Godard propõe.
Claro, não alguém que busque a
evasão pura e simples.
Mas basta ter noção da beleza
para entrar nessas histórias, tão
espantosos são os efeitos que
Godard arranca das superposições de imagens, da organização da banda sonora, das palavras do narrador que se escondem sob ruídos.
Mas não é de um exercício
meramente formal que se trata.
Godard evoca e amplifica a célebre máxima de um dos irmãos
Lumière: o cinema é uma arte
sem futuro. Portanto, do presente. Uma arte que tira mais do
mundo do que dá.
Talvez seja esse o fundamento
dessas "História(s)". Ao contrário das outras artes, o cinema é
um ladrão do mundo: ele não
cria, e sim retira coisas do mundo e as acondiciona.
As histórias que Godard conta
são, hoje, as de um guerrilheiro
para quem o cinema falhou na
missão de organizar o olhar. São
estilhaços de uma possível arte
que reivindicam, ainda, sua presença num presente em que a
indústria da evasão ganhou, claramente, a batalha.
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