São Paulo, terça-feira, 06 de março de 2001

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ARNALDO JABOR

Todos nós queremos ser canibais

Eu ia escrever um artigo sobre o atual canibalismo político no Brasil, sobre o campeonato de denúncias para saber quem é mais ladrão, ao som de procuradores sapateando em fitas como bailarinas espanholas, mas... cansei e resolvi ir à "real thing" e escrever sobre o canibal Hannibal, criação luminosa de Anthony Hopkins, agora no filme de Ridley Scott.
O filme é ruim, mas é bom de ver, se é que me entendem. Hoje só me interessam as informações "filmológicas" das fitas; qualidade, se houver, é um brinde casual. Por "filmologia" refiro-me à disciplina dos anos 60, criada pela turminha de Gilbert Cohen-Seat (quem ainda se lembra?) de modo a entender as tendências sociais que o cinema revela.
O que me interessa nesse filme é a extraordinária personagem do canibal dr. Hannibal Lecter. Ele é uma rica metáfora da gelada ética que se instala no mundo. Hopkins criou uma figura que nos fascina como poucas no imaginário desta fronteira de milênios. Hannibal é um achado, e a razão de seu sucesso não é somente a qualidade do ator. Os Oscar recebidos e o estouro de bilheteria mostram que Hopkins acertou na mosca, trouxe à luz algum desejo difuso no ar do tempo.
Hannibal é inteligentíssimo, amante do belo, com uma extrema elegância culta. E o grande achado é que a pessoa mais civilizada do mundo é também um canibal. Ninguém comete crimes com mais "finesse" que ele. Hannibal busca quase uma forma de arte, praticada com invenção e maestria na devoração e no assassinato.
Há em Hannibal um eco da perversão iluminista de Sade, com a precisão dos cortes, a geometria da crueldade, o rigor estético do mal. Há, como em Sade, o desejo de refutar a moralidade de um "antigo regime", de ir além do permitido, de provar a mediocridade da piedade, a hipocrisia do bem. Há quase uma "bondade" na crueldade de Hannibal.
Hopkins (alcoólatra e famoso perverso inglês) criou uma personagem exemplar e contemporânea. Diante de Hannibal, todos nós nos sentimos meio babacas, antigos, caretas.
Na literatura do horror, Hannibal é um marco novo; vai além dos vampiros e "dráculas", figuras ilustres do romantismo. O vampiro era uma homenagem ao amor sublime, a uma sexualidade idealizada e agônica, quando os escravos da paixão ansiavam pelo êxtase da dentada no pescoço. Com Hannibal não há a nostalgia triste dos vampiros. Ele é um "reformador de costumes". Hannibal quer exterminar os medíocres e, espantosamente, sonha com um mundo belo. Ele despreza suas vítimas, e o único perigo que corre é o de se apaixonar pela policial Clarice Starling, ex-Jodie Foster e atual Julianne Moore. A cândida policial o emociona, e Hannibal vê em Clarice uma beleza que desejaria para o mundo todo. "Não te devoro porque o mundo fica mais bonito com você...", diz ele em "O Silêncio dos Inocentes".
Hannibal é pós-moderno (argh!...). Ele nos acena com um delicioso futuro primitivo, com uma volta à animalidade perdida, depois de tantos séculos de ciência. É como se ele dissesse: "Nenhum saber, nenhuma ética, nenhuma religião vai apagar o animal feroz que há em nós. A humanidade é um caso perdido, e eu sou a prova disso...".
Cada vez somos mais como ele no darwinismo social que se instala. Já somos mais sozinhos, mais avessos à compaixão, mais frios. Para sobreviver, precisamos não ver o sofrimento dos outros, a injustiça e a desigualdade. Queremos ser tocados pela graça da impiedade. Daí o fascínio do assassino. Nada mais atraente que a psicopatia elegante. Todos queremos ser como Hannibal.
Além disso, Hannibal nos dá a rara oportunidade de, no escurinho do cinema, torcer pela vitória do perverso, pelo triunfo do mal. Isso nos excita como a mais louca liberdade. A vitória do crime liberta secretamente nosso canibalismo secreto de milênios.
Schwarzenegger, Van Damme, Mel Gibson estariam lutando "pelo bem", pela sociedade civil. A violência nesses filmes é hipócrita, exibida como chamariz comercial, mas dissimulada pela boa ação dos heróis da lei. O sangue, as explosões de corpos são mostrados como os "horrores do mal" e assim faturam bilhões pagos por nosso sadismo enrustido. Com Hannibal, podemos nos repastar na perversão, sem barretadas ao bem, feito sexo sem pecado.
Na realidade, Hannibal é um ícone da guerra narcísica do mundo atual. Estamos cada vez mais sozinhos como Hannibal.
O canibalismo social está por baixo de nossos desejos. Queremos amar sozinhos, vencer sozinhos, devorar o mundo como devoramos sushis em balcões yuppies, queremos nos apropriar da vida ferozmente, sem competidores. Em "Psicopata Americano", o criminoso é uma anomalia. Hannibal é sofisticado e invejável em sua inteligentíssima frieza.
Quando falamos em "comer" mulheres ou homens, sonhamos com uma sexualidade canibal livre dos problemas do amor. Acabamos de ver as escolas de samba, com mulheres se oferecendo completamente nuas e um grande supermercado de corpos, como pedaços de comida em prateleiras.
Há dez anos, na estréia de "O Silêncio dos Inocentes", escrevi o seguinte:
"Os crimes frios são o prenúncio dos futuros extermínios em massa. Como ficou arcaica a compaixão, queremos ser tocados pela graça da frieza. (...) O que nos fascina na personagem de Hopkins é que ele parece estar mais além de uma moral antiga e que ele contempla, do outro lado do bem, uma nova realidade. Hannibal parece saber mais do que nós, que ainda vivemos mergulhados em dúvidas morais e culpas. O canibal e doutor Hannibal Lecter nos olha do futuro".



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