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ARNALDO JABOR
Todos nós queremos ser canibais
Eu ia escrever um artigo sobre o atual canibalismo político no Brasil, sobre o campeonato de denúncias para saber quem
é mais ladrão, ao som de procuradores sapateando em fitas como
bailarinas espanholas, mas... cansei e resolvi ir à "real thing" e escrever sobre o canibal Hannibal,
criação luminosa de Anthony
Hopkins, agora no filme de Ridley
Scott.
O filme é ruim, mas é bom de
ver, se é que me entendem. Hoje
só me interessam as informações
"filmológicas" das fitas; qualidade, se houver, é um brinde casual.
Por "filmologia" refiro-me à disciplina dos anos 60, criada pela
turminha de Gilbert Cohen-Seat
(quem ainda se lembra?) de modo a entender as tendências sociais que o cinema revela.
O que me interessa nesse filme é
a extraordinária personagem do
canibal dr. Hannibal Lecter. Ele é
uma rica metáfora da gelada ética que se instala no mundo. Hopkins criou uma figura que nos fascina como poucas no imaginário
desta fronteira de milênios. Hannibal é um achado, e a razão de
seu sucesso não é somente a qualidade do ator. Os Oscar recebidos
e o estouro de bilheteria mostram
que Hopkins acertou na mosca,
trouxe à luz algum desejo difuso
no ar do tempo.
Hannibal é inteligentíssimo,
amante do belo, com uma extrema elegância culta. E o grande
achado é que a pessoa mais civilizada do mundo é também um canibal. Ninguém comete crimes
com mais "finesse" que ele. Hannibal busca quase uma forma de
arte, praticada com invenção e
maestria na devoração e no assassinato.
Há em Hannibal um eco da perversão iluminista de Sade, com a
precisão dos cortes, a geometria
da crueldade, o rigor estético do
mal. Há, como em Sade, o desejo
de refutar a moralidade de um
"antigo regime", de ir além do
permitido, de provar a mediocridade da piedade, a hipocrisia do
bem. Há quase uma "bondade"
na crueldade de Hannibal.
Hopkins (alcoólatra e famoso
perverso inglês) criou uma personagem exemplar e contemporânea. Diante de Hannibal, todos
nós nos sentimos meio babacas,
antigos, caretas.
Na literatura do horror, Hannibal é um marco novo; vai além
dos vampiros e "dráculas", figuras ilustres do romantismo. O
vampiro era uma homenagem ao
amor sublime, a uma sexualidade idealizada e agônica, quando
os escravos da paixão ansiavam
pelo êxtase da dentada no pescoço. Com Hannibal não há a nostalgia triste dos vampiros. Ele é
um "reformador de costumes".
Hannibal quer exterminar os medíocres e, espantosamente, sonha
com um mundo belo. Ele despreza suas vítimas, e o único perigo
que corre é o de se apaixonar pela
policial Clarice Starling, ex-Jodie
Foster e atual Julianne Moore. A
cândida policial o emociona, e
Hannibal vê em Clarice uma beleza que desejaria para o mundo
todo. "Não te devoro porque o
mundo fica mais bonito com você...", diz ele em "O Silêncio dos
Inocentes".
Hannibal é pós-moderno
(argh!...). Ele nos acena com um
delicioso futuro primitivo, com
uma volta à animalidade perdida, depois de tantos séculos de
ciência. É como se ele dissesse:
"Nenhum saber, nenhuma ética,
nenhuma religião vai apagar o
animal feroz que há em nós. A
humanidade é um caso perdido, e
eu sou a prova disso...".
Cada vez somos mais como ele
no darwinismo social que se instala. Já somos mais sozinhos,
mais avessos à compaixão, mais
frios. Para sobreviver, precisamos
não ver o sofrimento dos outros, a
injustiça e a desigualdade. Queremos ser tocados pela graça da impiedade. Daí o fascínio do assassino. Nada mais atraente que a psicopatia elegante. Todos queremos
ser como Hannibal.
Além disso, Hannibal nos dá a
rara oportunidade de, no escurinho do cinema, torcer pela vitória
do perverso, pelo triunfo do mal.
Isso nos excita como a mais louca
liberdade. A vitória do crime liberta secretamente nosso canibalismo secreto de milênios.
Schwarzenegger, Van Damme,
Mel Gibson estariam lutando
"pelo bem", pela sociedade civil.
A violência nesses filmes é hipócrita, exibida como chamariz comercial, mas dissimulada pela
boa ação dos heróis da lei. O sangue, as explosões de corpos são
mostrados como os "horrores do
mal" e assim faturam bilhões pagos por nosso sadismo enrustido.
Com Hannibal, podemos nos repastar na perversão, sem barretadas ao bem, feito sexo sem pecado.
Na realidade, Hannibal é um
ícone da guerra narcísica do
mundo atual. Estamos cada vez
mais sozinhos como Hannibal.
O canibalismo social está por
baixo de nossos desejos. Queremos amar sozinhos, vencer sozinhos, devorar o mundo como devoramos sushis em balcões yuppies, queremos nos apropriar da
vida ferozmente, sem competidores. Em "Psicopata Americano", o
criminoso é uma anomalia. Hannibal é sofisticado e invejável em
sua inteligentíssima frieza.
Quando falamos em "comer"
mulheres ou homens, sonhamos
com uma sexualidade canibal livre dos problemas do amor. Acabamos de ver as escolas de samba,
com mulheres se oferecendo completamente nuas e um grande supermercado de corpos, como pedaços de comida em prateleiras.
Há dez anos, na estréia de "O
Silêncio dos Inocentes", escrevi o
seguinte:
"Os crimes frios são o prenúncio
dos futuros extermínios em massa. Como ficou arcaica a compaixão, queremos ser tocados pela
graça da frieza. (...) O que nos fascina na personagem de Hopkins é
que ele parece estar mais além de
uma moral antiga e que ele contempla, do outro lado do bem,
uma nova realidade. Hannibal
parece saber mais do que nós, que
ainda vivemos mergulhados em
dúvidas morais e culpas. O canibal e doutor Hannibal Lecter nos
olha do futuro".
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