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CONTARDO CALLIGARIS
O Carnaval e a guerra do Rio
Os turistas não se deixaram intimidar pelo noticiário e vieram para o Carnaval do
Rio em número recorde. Tiveram
razão. Mas, até o domingo, eu receava que o único bloco em consonância com o ar do momento
fosse o "Que M... É Essa?", com o
enredo: "M... de Guerra ou Guerra de M...?".
Eu não pensava na guerra entre
os EUA e o Iraque, mas na guerra
do Rio: dezenas de ônibus incendiados, depredados ou metralhados, cidadãos executados, queimados, aterrorizados.
Alguém dirá: não vamos exagerar, o Comando Vermelho é uma
organização criminosa, por que
falar em guerra? Guerra é a luta
entre facções do narcotráfico, em
que se enfrentam exércitos de entidades equivalentes, morro contra morro. Mas, em relação ao
resto da sociedade, o narcotráfico
quer realizar ganhos: pratica crimes, não guerra.
Acontece que as coisas mudaram radicalmente na semana
passada. Não se tratou de assaltar
cidadãos ou de conquistar bocas-de-fumo. Tratou-se de chantagear o Estado e a federação. E a
chantagem foi política, não financeira.
Explico. Uma organização criminosa pode anunciar que, se o
governo não pagar uma soma de
dinheiro, um ônibus será incendiado com todos os seus passageiros. O cinema nos mostrou situações desse tipo. "Mandem alguns
milhões para minha conta ou detonarei uma bomba nuclear no
meio da cidade." Faz parte da lógica do crime.
Ora, os novos ataques do Comando Vermelho foram de outra
ordem. Pediam que o Estado e a
federação não atrapalhassem o
conforto e a capacidade operacional de Fernandinho Beira-Mar
na prisão.
Sutileza: não foi pedido que ele
fosse solto por decreto. O narcotráfico não quer destituir o poder
público a esse ponto: a bagunça
de um país sem governo talvez
não seja boa para os negócios. O
narcotráfico ambiciona ser o poder real atrás de um governo fantoche. Até uma eventual evasão,
Beira-Mar aceita ficar preso, pois
assim serão mantidas as aparências do poder público. Mas, a partir de sua cela, ele quer estabelecer
os limites da autoridade do próprio Estado que o encarcera.
O ataque da semana passada é
um ato de guerra, porque seu alvo
não é o bolso das pessoas, mas a
própria legitimidade do poder
que emana da convivência dos
brasileiros.
Escutei mil considerações sobre
as razões que podem tornar os cariocas (e o país inteiro) reféns do
Comando Vermelho. Todas valem e são corretas. A história nos
ofereceu elites corruptas e exploradoras. Nossa cultura não honra
a função pública, logo entrega as
forças da ordem à corrupção. As
diferenças sociais forçam um
exército de excluídos a tomar as
armas contra a comunidade nacional como se fosse uma outra
tribo. Uma cegueira política leva
alguns a imaginar que as Farc colombianas, aliadas de Beira-Mar,
sejam portadoras de uma esperança social. A corrupção endêmica na esfera do poder público
alimenta o cinismo: por que não o
Comando Vermelho, uma vez
que tantos governantes saquearam o país impunemente? E por
aí vai.
Mas consideremos uma hipótese um pouco antiquada: se o país
fosse invadido por um exército estrangeiro, qual seria a urgência?
Refletir sobre as fraquezas que
encorajam a invasão? Ou achar o
ânimo para enfrentá-la?
Diante das agressões, os Estados
democráticos são fracos, sempre
lerdos e constrangidos pelo respeito das regras constitucionais.
Além disso, há traços culturais da
modernidade que pioram as coisas.
Por exemplo, somos levados a
procurar em nós mesmos a razão
ou mesmo a culpa do que nos
acontece: "Minha namorada me
deixou, não posso obrigá-la a voltar, mas posso (ou, melhor, devo)
me perguntar como e por que não
fui capaz de amá-la o suficiente
para que permanecesse comigo".
Equivalente, no caso que nos interessa: o Comando Vermelho quer
dominar o Estado, a culpa é também nossa, pois toleramos elites
corruptas e exploradoras etc. (segue a lista esboçada antes).
Outro traço: os outros nos aparecem, antes de mais nada, como
nossos semelhantes. Consequência: enquanto fulano me massacra, enterneço-me pensando na
infância sofrida que o levou para
o caminho errado. Com isso, temos uma dificuldade crônica em
reconhecer nossos inimigos ou
mesmo em admitir que temos
verdadeiros inimigos.
Essas fraquezas da democracia
e da subjetividade moderna deveriam ser corrigidas por uma força: o sentimento de um patrimônio compartilhado para defender.
Claro, o recurso a esse sentimento
é difícil quando a sociedade é dividida por desigualdades extremas.
A hora não é banal: talvez se decida nestes dias se a Colômbia de
hoje será ou não o Brasil de amanhã. Sou moderadamente otimista, e não só pela presença (apropriada, tratando-se de uma guerra) do Exército nas ruas do Rio.
Conto com os enredos do desfile
de terça-feira. O "Samba da Paz"
da Mangueira foi um elogio à luta de Moisés, que, na hora da briga, não hesitou em mandar pragas como balas. E a Beija-Flor
lembrou que, para chegar até a
paz, é necessário, às vezes, lutar,
usando "a mão que faz a guerra".
Desejos de paz, em suma, mas
dispostos a pagar o preço necessário.
ccalligari@uol.com.br
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