São Paulo, sábado, 06 de março de 2004

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Biografia de um clássico


"A Ética Protestante e o "Espírito" do Capitalismo", de Max Weber, ganha reedição com reunião do texto original (1904) e o mais conhecido (1920)



Lançamento da nova versão da obra do alemão foi coordenado pelo sociólogo Antônio Flávio Pierucci


VINICIUS MOTA
DA REPORTAGEM LOCAL

Está quebrada uma imagem sobre a obra mais conhecida do sociólogo alemão Max Weber (1864-1920). "A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo" não é um único texto. São dois.
Tampouco estava o ensaio plenamente carregado com a poderosa conceituação weberiana quando foi publicado pela primeira vez, há cem anos. A famosa expressão "desencantamento do mundo", por exemplo, teria que esperar até 1920 para aparecer.
Essas e outras descobertas vão aflorar com a publicação prevista para o próximo dia 29, pela Companhia das Letras, de "A Ética Protestante e o "Espírito" do Capitalismo".
As aspas em "espírito" não significam deslize dos editores. Preservam à exatidão o título do texto publicado, em duas partes, nos volumes 20 (1904) e 21 (1905) da revista "Archiv für Sozialwissenchaft und Sozialpolitik".
"Aspas de cautela e ao mesmo tempo de ênfase", escreve na apresentação da nova edição brasileira o sociólogo Antônio Flávio Pierucci, 58, professor da USP. Ele foi o responsável pela revisão técnica e edição de texto. Também elaborou apresentação, referências vocabulares, glossário e índice remissivo. A tradução é de José Marcos Mariani de Macedo.
Max Weber suprimiria as aspas na versão de 1920, a mais conhecida no mundo e até agora a única disponível em tradução brasileira. Mas as mudanças não pararam aí.
Foi feita pelo autor alemão uma série de inserções no texto original, quase sempre para esmiuçar, depurar, amarrar conceitualmente o ensaio de perfil mais histórico-descritivo de 1904-5.
Alterações em títulos também ocorreram na versão de 1920. A parte dois do volume em 1904 se chamava "A idéia de profissão". O título escolhido 15 anos depois foi "A ética profissional do protestantismo ascético", mais trabalhada para exprimir um conceito.

Duas edições em uma
A solução para oferecer ao leitor brasileiro, num só volume, a versão original e a posterior é, até onde se sabe, inovadora: elas foram justapostas no correr das páginas, e a década e meia de evolução intelectual que separa uma da outra foi marcada por colchetes.
O resultado dessa operação dá ao leitor a sensação de estar diante de um sítio arqueológico textual. "Isso mostra que a obra, ela mesma, tem a sua própria biografia e ajuda a quebrar a louvação sobre a "Ética" como uma obra acabada", disse Pierucci à Folha.
À página 139, vê-se um exemplo desse efeito: "O trabalho é um meio ascético há muito comprovado, desde sempre apreciado na igreja do Ocidente [em nítido contraste não só com o Oriente, mas com quase todas as Regras monásticas do mundo inteiro]".
Nos 15 anos até a inserção do trecho entre colchetes, decorre um período de intensa depuração analítico-conceitual de Weber para o qual o estudo comparado, extensivo e sistemático entre as grandes tradições religiosas do Ocidente e do Oriente (sobretudo Índia e China) foi fundamental.
Essa evolução pode ser acompanhada no livro "O Desencantamento do Mundo" (ed. 34), que Pierucci lançou recentemente. No mundo desencantado, a religião se despoja da magia, da contemplação e dos rituais místicos, características da tradição oriental.
De um lado está tipificado o místico que lida com deuses e demônios imersos em seu próprio mundo, sacrifica animais para aplacar a fúria de um espírito, usa de sortilégios para que viva mais, para que se cure da doença, para que vença uma contenda etc.
Do outro, o ocidental, está mais saliente a ética religiosa, em que o divino já se distanciou do mundo (está em outra dimensão) e na qual a rotinização da ação cotidiana, da conduta de vida, tem, ela própria, um sentido religioso.
O desencantamento do mundo é, para Weber, o trânsito da primeira para a segunda tradição. A passagem de uma para outra estratégia religiosa é um processo de longa duração que caracteriza, para o autor, a história ocidental, enquanto, por exemplo -e Pierucci cita Weber, não o da "Ética", em seu livro-, "o mundo indiano permaneceu um jardim encantado irracional".
E o ápice desse processo de racionalização é identificado pelo autor alemão em alguns ramos do protestantismo ascético descritos na "Ética" de 1904, mas cuja evolução, em termos de desencantamento do mundo, só seria conceituada, ensina Pierucci, a partir dos escritos já tardios de Weber -por volta de 1913.
"Quando Weber insere o desencantamento do mundo na "Ética" de 1920, os conceitos fundamentais de sua sociologia já estavam formulados", diz Pierucci.

Disciplina do corpo
Nos ramos mais radicais do protestantismo analisados por Weber, a ascese intramundana é levada ao extremo. Ascese, como explica o glossário da nova edição brasileira, é "o controle austero do corpo através da evitação metódica do sono, da comida, da bebida, da fala, da gratificação sexual e de outros tantos prazeres".
E intramundana porque, à diferença do monge que jejua para comunicar-se com o outro mundo, é praticada no dia-a-dia por pessoas comuns, que introjetam cálculo, disciplina e método nos seus afazeres mais comezinhos.
O protestantismo ascético que se desenvolveu na Europa Ocidental e nos Estados Unidos, portanto, favoreceu a racionalização do cotidiano. Mais: transformou o trabalho metódico, vocacional, numa finalidade em si mesma, carregada de sentido religioso.
E a relação sinérgica entre a cultura capitalista e a frugalidade e disciplina laboriosa do corpo é certeira para Weber.
"A valorização religiosa do trabalho profissional mundano, sem descanso, continuado, sistemático, (...) tinha que ser, no fim das contas, a alavanca mais poderosa que se pode imaginar dessa concepção de vida que aqui temos chamado de "espírito" do capitalismo", escreve Weber, na nova tradução brasileira.
Mesmo os brasileiros que se acostumaram a ler a tradução já existente da "Ética" de 1920 no Brasil não toparam com a expressão "desencantamento do mundo" ("Entzauberung der Welt", no original alemão). Os tradutores anteriores preferiram utilizar termos mais didáticos, como "eliminação da magia do mundo".
Outra restituição vocabular foi o uso da expressão "afinidades eletivas" para descrever a atração "entre a ética religiosa do protestantismo ascético e a racionalidade prática da cultura capitalista", como escreve o professor da USP no glossário. O termo é tomado da alta literatura alemã (Goethe).
Também sugestiva é a inserção feita por Weber, em 1920, da palavra ab-reação. Trata-se, como explica o glossário, de termo típico da psicanálise freudiana: é o alívio de carga emocional que um indivíduo sente ao ver-se livre de "um acontecimento traumático até então recalcado". As afinidades eletivas entre Weber e Freud são ainda pouco conhecidas e estudadas.

A ÉTICA PROTESTANTE E O "ESPÍRITO" DO CAPITALISMO. Autor: Max Weber. Lançamento: Companhia das Letras. Quanto: R$ 38 (288 págs.)


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