São Paulo, sábado, 06 de março de 2004

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LITERATURA

Sociólogo crê que religião no país não estimula racionalização de ações, diferentemente do ideal weberiano

Brasil vive "reencantamento", diz Pierucci

Tuca Vieira/Folha Imagem
Antônio Flávio Pierucci, que edita a tradução de "A Ética Protestante e o "Espírito' do Capitalismo"


DA REPORTAGEM LOCAL

O capitalismo no Brasil não deu certo -não na medida em que "deu certo" nos países centrais- pela ausência de algo parecido com a ética do protestantismo ascético? Não se pode fazer afirmação tão categórica baseada no estudo de Weber, responde o sociólogo Antônio Flávio Pierucci.
Mas é possível afirmar, segue em seu raciocínio o professor da USP, que a religiosidade no Brasil caminha no sentido inverso do processo descrito por Weber.
O aumento da massa de brasileiros atraídos para as denominações neopentecostais, argumenta Pierucci, é um sintoma desse processo invertido. As práticas dessas igrejas (como a Universal do Reino de Deus, a Deus é Amor e a Renascer) vão justamente no sentido do transe mágico associado por Weber a estratégias religiosas místicas, e não ascéticas.

Contabilidade
Pierucci propõe um raciocínio hipotético para exemplificar sua tese: "Imagine se o bispo Edir Macedo [Igreja Universal], em vez de valorizar o "descarrego", ensinasse seus fiéis a realizar a contabilidade pessoal, a contar os centavos que entram e que saem de seu orçamento doméstico".
E conclui: "Aí teríamos uma prática coerente com a descrição de Weber". Ou seja, a religião favoreceria a racionalização das ações cotidianas.
"Mas o Brasil vive um processo de reencantamento do mundo", afirma Pierucci.
É preciso considerar também, diz o sociólogo paulista, que no Brasil outros fatores desfavorecem a inculcação dos valores culturais do capitalismo.
"A industrialização não incluiu as massas. O próprio estímulo do salário não funciona numa sociedade em que ter um emprego já é algo excepcional. Daí o estímulo às práticas mágicas", argumenta.

Trabalho como valor
Ler "A Ética Protestante e o "Espírito" do Capitalismo" nos dias de hoje ajuda enxergar certos aspectos da realidade que nos cerca, diz Pierucci. O contraste com as manifestações protestantes que se expandem no Brasil auxilia a entender que Weber não tratou em sua obra do protestantismo como um fenômeno histórico genérico.
O sociólogo alemão é de fato bastante certeiro no objeto de sua pesquisa. Busca a ascese intramundana e a encontra, em estado mais puro, em quatro movimentos do protestantismo histórico: o calvinismo, o pietismo, o metodismo e "as seitas nascidas do movimento anabatista".
Em comparação com esses movimentos, "o próprio luteranismo clássico era menos desencantado", diz Pierucci.
Mas o impacto que, para ele, é mais forte na leitura do texto de Weber é perceber que a ética que valoriza o trabalho metódico, vocacional, como ambiente da satisfação individual persiste até hoje.
"O trabalho é um dever ético, se introjeta como obrigação, como uma crosta de aço da qual o indivíduo moderno não pode escapar. É um dever dele com ele próprio, e não mais com Deus", conclui Antônio Pierucci.
(VM)


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