São Paulo, terça-feira, 06 de março de 2007

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FERNANDO BONASSI

A caixa-preta

Todos afirmam falar a mesma língua, mas é como se "hablassem" "desesperanto"

C OMEÇA QUE não tem luz. Mal se enxergam na escuridão e, quando enxergam, enxergam o mal que se avizinha.
Passaram a desconfiarem-se nas decisões conjuntas...
Olha que não são poucos... São o quê? Noventa, 120 ou 200 milhões em ação... Mas como não têm qualquer referência de sua quantidade ou eficiência, sentem que não saem do lugar em que estão, ou acreditam que o melhor lugar em questão é isso daí, ou daqui mesmo...
Pode até ser, mas como não pagam para ver, vagam a esmo ensimesmados e enciumados, uns mais ricos do que os outros em desentendimentos.
Todos afirmam falar a mesma língua, por exemplo, mas quando abrem as bocas se confundem de um tanto que é como se "hablassem" uma espécie de "desesperanto", esse canto de cisne negro e gripado, esse blues do espanto calado onde vivem.
É um silêncio aterrador que se ouve enquanto permanecem atônitos e entocados!
Não há equipamento anticolisão que os avise, e, se houvesse, não perceberiam nem decifrariam os seus códigos, já que nada de regras, teorias ou idéias combina com a situação de miséria em que ficam empacados.
Também preferem debaterem-se em chacinas anunciadas e achaques judiciários para acharem-se mais seguros contra os franco-atiradores.
Francamente seguros estão apenas os donos das empresas de blindagens, principalmente que o seu negócio vai subir a um ponto tão indecente que pode ser que eles tenham que blindar as próprias roupas de baixo para sobreviverem aos ataques dos funcionários excluídos.
Esse é o raciocínio simplificado do complicado racionamento que serve ao planejamento do colonialismo, canibalismo ou coronelismo do capitalismo brasileiro.
A vantagem dos nossos herdeiros honrados e inseguros, é claro, é que sobrevoam as mazelas das favelas em helicópteros fretados, de modo a pensarem mais longe, além da linha do horizonte congestionado pela sua degradação ali embaixo.
O fato é que os de cima e os de baixo pisam uns aos outros como a si mesmos!
Seu sentido de orientação é uma desolação, e sua visão, que não é grande coisa nas circunstâncias taciturnas, é como uma piada sem graça que os cegos fazem com quem tem a desgraça de um olho crítico, ou ético, encerrando-os em suas terras e serras de soja transportada e patrocinada "na moral".
Aquilo ali, ou aqui, que é quase nada para muitos, é tão claramente obscuro para uns poucos que nem sabemos se chega a ser um lugar definido para todos. Parece melhor que seja indefinido e indecifrável para a minoria e incompreendido e inquestionável para a maioria, num enigma de tolos reacionários.
Não se iludem para avançar nem se tocam para se estudar, com medo do que podem se pensar com inteligência.
Todos partilham esta paciência frenética, ou pressentimento patético de que uma tragédia pode acontecer a qualquer momento. E, quando finalmente acontece, os tais a esquecem em seguida e por seguidas vezes, como se estivessem fadados a serem os danados de um inferno de Sísifos.
Esse inferno perdulário está cheio de intenções, mas os melhores só tiram os dinheiros das aplicações para promover o desenvolvimento de todos os outros que visitam e sustentam com passagens, hospedagens e milhagens a milhares de quilômetros de distância.
Gozam do benefício e do beneplácito de ficarem camuflados onde tiverem que ir, invisíveis para o que não quiserem agir.
É assim que se tratam os espertos patriotas, já que escolhem esconder as caras em fuga nos blindados importados, do que recapturarem os impostos desviados nos seus estáveis depósitos bancários estrangeiros, num colonizado nacionalismo de terceiros...
É bom dizer, em nome da injustiça, que se dinheiro não tem pátria, os banqueiros não têm culpa. São como os psicopatas, portanto; mas, ao contrário deles, têm psicologia e publicitários.
A psicologia e a propaganda estão aí para justificar ou embalar a sanha dos ponderados que exigirem linchamentos.
Aliás, na hora em que abrirem essa coisa, eu não quero ser o primeiro técnico especializado ou assessor faxineiro contratado para limpar e sentir o cheiro a sair disso... Dessa... Isto é, da "caixa"...


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