São Paulo, sábado, 06 de março de 2010

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

LIVROS

Crítica/ "Uma Mulher Inacabada"

Memórias de Lillian Hellman relembram geração utópica

Dashiell Hammett, companheiro da escritora, tem presença marcante no livro

MARCELO PEN
ESPECIAL PARA A FOLHA

Duas coisas saltam à vista durante a leitura deste primeiro volume de memórias mais ou menos reais da dramaturga americana Lillian Hellman (a José Olympio também está relançando os outros dois, "Pentimento" e "Caça às Bruxas"): a importância do papel ocupado por seu companheiro de mais de 30 anos, o escritor Dashiell Hammett, e a impressão de que os homens e mulheres daquela época, ou os artistas, eram gente de outro talante. Nascida em Nova Orleans em 1905, Lillian conheceu Hammett em um restaurante de Hollywood, quando ela tinha 24 e ele, 36 anos.
O autor de "O Falcão Maltês" já era um nome respeitado. Ao contrário dos escritores da moda em Nova York e Hollywood, surgidos, segundo Lillian, "a cada temporada de inverno", ele manteve a aura.
Não que ela fale de Hammett o tempo todo. Mas a sombra do companheiro paira sobre a narrativa mesmo quando Lillian está contando outros casos. Como nas duas vezes em que viajou à Europa para apoiar causas "nobres": durante a Guerra Civil Espanhola e a visita à União Soviética, perto do fim da Segunda Guerra.
A defesa da república na Espanha atraiu muitos intelectuais, como Hemingway e John dos Passos. A descrição da curta estada da autora em uma pequena aldeia, quando é apresentada como parente de Charles Chaplin, e das horas que passa ao lado de um jovem jornalista francês (praticamente as últimas dele) estão entre as melhores do livro.
Igualmente excelente, por sua precisão aterrorizante, é a passagem em que ela vê um comprido verme arrastar-se pela parede gelada do campo de extermínio recém-libertado de Maidanek, na Polônia.
Esse episódio ocorreu no inverno de 1945. Lillian havia partido para Moscou, via Sibéria, numa viagem de duas semanas em um avião sem aquecimento. O rigor das condições quase lhe custou a vida. Depois seguiu para o front polonês. O fogo nazista estava a 200 metros e algumas bombas chegaram a atingir o abrigo em que ela se encontrava.
Os escritores da geração de Lillian, ou da imediatamente anterior, como Hammett, Faulkner e Hemingway, foram os primeiros a lidar com a opulência trazida por Hollywood (que afetou a indústria livreira e a cena teatral). A relação foi deletéria para a maioria e isso está expresso quer na forma, quer no conteúdo de muitas de suas obras.
Mas eles tinham algo a mais. Havia a utopia, os ideais que fizeram com que uma filha de um caixeiro viajante do sul dos Estados Unidos se aventurasse em guerras estrangeiras e depois desafiasse as hostes macarthistas nos anos 1950. Esses sonhos, com que se forjaram as certezas daquela geração, foram se perdendo ao longo do século passado.

MARCELO PEN é professor de teoria literária na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP.


UMA MULHER INACABADA

Autora: Lillian Hellman
Tradução: Carlos Sussekind
Editora: José Olympio
Quanto: R$ 49 (384 págs.)
Avaliação: bom




Texto Anterior: Livros/Crítica / "Éloge de L'Amour": Alain Badiou discute o papel político e social do amor
Próximo Texto: Crítica/ "Nada a Dizer": Livro faz retrato soturno da classe média
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.