São Paulo, quinta-feira, 06 de abril de 2000


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TEATRO
"Fábula de um Cozinheiro", de Shepard e Chaikin, conta relação entre repórter e assassino
Mika e Marzo "cozinham" estranho amor

Lenise Pinheiro/Divulgação
O ator Cláudio Marzo volta a SP após 20 anos


da Redação

William Pereira admite que não tinha qualquer fascínio pela "carcaça realista" da obra do norte-americano Sam Shepard, um dos mais importantes dramaturgos vivos. Mas ao ler "Fábula de um Cozinheiro" (When the World Was Green - A Chef's Fable), o diretor de "O Livro do Desassossego" e "Luzes da Boemia" (ambas em 98) mudou radicalmente de opinião, deixando de acreditar que a tal "carcaça" era uma maravilha para o cinema, mas estorvo para a linguagem teatral.
"Fábula de um Cozinheiro", parceria de Shepard com Joseph Chaikin, o diretor do Open Theatre de Nova York, foi escrita em 96. A primeira montagem brasileira da peça estréia hoje no teatro Hilton, em São Paulo, com produção da atriz Mika Lins, que contracena com Cláudio Marzo nos dois únicos papéis.
"Tudo que não gostava em Shepard caiu por terra. Quando li, percebi que se tratava de um texto não-realista. A primeira coisa que me veio à cabeça é que a peça é uma grande armadilha, induz à linearidade e a um bate-papo chato entre duas pessoas, mas está longe disso", acredita Pereira, 37.
São oito encontros entre um velho cozinheiro, condenado à pena de morte por assassinato, e uma jovem repórter incumbida de decifrar a sua história. Aliás, o verbo "decifrar" é propício ao enredo.
"Eles têm uma coloquialidade que é falsa. Quando falam alguma coisa, na verdade querem dizer outra", define Pereira. Tudo está "shepardianamente" nas entrelinhas. "Em dois meses de ensaios, a peça foi ganhando outra dimensão. Começamos a estudar as intensões, as ambiguidades", explica Mika, 34.
Os encontros estabelecem uma cumplicidade entre os personagens. A repórter leva comida e travesseiro para o presídio, por exemplo. Sabe-se que ela perdeu o pai na infância, daí a identificação paterna com o homem que trata com certa obsessão. Mas o apoio não seria um álibi para conseguir informações subterrâneas? Novamente o duplo sentido.
A história do chefe é digna dos personagens de García Márquez, ainda que o realismo fantástico passe a anos-luz. Ele veio ao mundo com a missão de assassinar um primo. O motivo? Uma rixa familiar, "faz 200 anos, eu acho". Mataram a mula do seu "tatara-tataravô", com veneno. Foi o suficiente para o legado de morte ser transferido por gerações. A ele caberia o assassinato do primo, conforme encomendara o pai. A suposta vítima e seu algoz chegaram a brincar na infância, mesmo quando já conheciam as linhas traçadas pelo destino.
Durante anos o velho cozinheiro retarda sua emboscada, inclusive por conta do despistamento do primo. Quando finalmente o envenenou, vingando o que fizeram com a mula ancestral, descobriu que matara o homem errado.
"Ele é preso a uma certa tradição, como somos todos que herdamos a cultura judaico-cristã", diz Cláudio Marzo, 59. "Somos presos a alguma coisa e demoramos para perceber que elas nem sempre dizem respeito à nossa individualidade."
Para Marzo, os personagens criados por Shepard e Chaikin têm uma aura mítica. "A peça funciona como um poema de duas vozes, que simboliza, por exemplo, a busca do ser humano por amor", afirma.
Com "Fábula de um Cozinheiro", Marzo retorna ao teatro paulistano. Ele iniciou sua carreira no Oficina, de José Celso Martinez Corrêa, nos anos 60. Não se apresentava nos palcos da cidade há pelo menos duas décadas.

O autor
Sam Shepard, 56, autor de "Fábula", começou sua carreira profissional em 1967, embora a vocação para a escrita o acompanhasse desde a infância. Na década de 60, conheceu Chaikin, do Open Theatre, parceiro em várias montagens.
O dramaturgo tem extensa carreira também em cinema, tanto adaptando textos seus e de outros autores como atuando. Em "Paris, Texas", por exemplo, filme dirigido pelo alemão Wim Wenders, fez as duas coisas -a adaptação, inclusive, deu-lhe Palma de Ouro em Cannes. Ganhou em 1979 o Prêmio Pulitzer por "Criança Enterrada" ("Buried Child").
"Fábula de um Cozinheiro" foi traduzida por Marcos Renaux. Seu contato com a obra de Shepard vem desde 1988, com "Louco de Amor" ("Fool for Love"), dirigida por Hector Babenco.
(VALMIR SANTOS)


Peça: Fábula de um Cozinheiro Autores: Sam Shepard e Joseph Chaikin
Direção: William Pereira
Com: Cláudio Marzo e Mika Lins
Quando: estréia hoje, às 21h; sex. e sáb., às 21h; dom., às 18h. Até 28/5
Onde: teatro Hilton (av. Ipiranga, 165, subsolo, centro, tel. 0/xx/11/259-6508)
Quanto: R$ 25 a R$ 30


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