São Paulo, sábado, 06 de abril de 2002

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Nos porões de Brecht


Chega ao Brasil pela Cosac & Naify "O Declínio do Egoísta Johann Fatzer", peça de Bertolt Brecht organizada por Heiner Müller


Coro - E ele ficou três dias deitado ali. E a mulher trazia a comida para ele e ele perguntou a ela:
Fatzer - Como você vive?
Coro - Ela disse:
Therese Kaumann - Mal; porque vocês ficam sentados aí dia e noite. Não posso me deitar com o meu marido. Desde que ele voltou, não me tocou ainda.
Coro - E ele pediu a ela com palavras espertas que ela o soltasse, ela o fez e ele a embuchou. Daí ela correu para o marido e pensou em expulsar de sua casa os que a aborreciam e queixou-se de Fatzer. Eles foram até ele e disseram: Levante-se.
Fatzer - Como posso me levantar, se estou amarrado?
Coro - Você não está amarrado, a mulher o desamarrou e você a embuchou.
Fatzer - Eu fiz isso?
Então devo ser mais forte que todos vocês, apesar de terem me amarrado com cordas.
Coro - E o homem disse:
Kaumann - Agora vá embora de minha casa para que eu viva só com a minha mulher, porque ela o exige. E a minha casa é a casa dela.
Fatzer - Ele a obriga a admitir que tem sido pouco usada.
Daí ele diz que ela deveria atribuir a culpa à circunstância, já que Kaumann estava enfraquecido pela falta de comida. Daí ele prova a ela que as circunstâncias não são da conta deles. Ele pergunta a ela já que ela mesma se satisfaz, se não faz com todos, com quem imaginar, com estranhos, os que passassem e estivessem com o chapéu torto, com Koch também, com ele, até com os cachorros?
Therese Kaumann - Não! Isso não é verdade!
Fatzer - Ela grita. Então ele pergunta se ela crê em Deus. Ou o teme ao menos?
Therese Kaumann - Não mais.
Fatzer - Por que então ela teme, que alguém, sem se dar tempo para tirar as calças, se atire sobre ela, e saiba que ela está molhada?
Therese Kaumann - Porque significa muito.
Fatzer - Não significa nada. Se ela então acredita que dois em uma ilha, sexos diferentes, mas sem afeição -nada além do que entre ele e ela- também sem ódio -como a gente- ou talvez até com ódio anos vivendo juntos ou dias, digamos uma noite, numa cabana -como aqui- ou até separados por um dia, não deitariam juntos?
Therese Kaumann - Pode ser.
Fatzer - Bom.
Pois na natureza esse negócio é mesmo urgente.
O espírito humano, o berço ou coisa parecida, pode evitar isso -como com a gente-, assim como para a mulher, quando tem um homem, talvez fosse impossível.
Therese Kaumann - Claro.
Fatzer - Mesmo se ele não estivesse aqui, apesar de que, não, isso não seria possível.
Mesmo que ele estivesse aí, mas não pudesse, porque isso acontece.
[Therese Kaumann ri"
É claro, um abraço provocado pela ocasião, pelo impulso corporal, pelo desejo de enfiar o braço na cavidade do sovaco, seria pouco significativo: mesmo que o braço estivesse só no sovaco.
[Therese Kaumann ri de novo"
Vejo que você está frustrada primeiro pensando por que o seu homem não liga para você, daí pensando que é por outra razão, talvez por trabalhar duro demais, depois também, que está com aspecto meio doente, um pouco mais velha que sua idade, não muito, não deve ser nada, também vejo que você luta contra você, isso é louvável, não tem nada mais vergonhoso para uma mulher do que precisar disso, só porque alguém a toca, não resistir ou desejar. Percebo que você é mais esperta, sabe que o seu homem está enfraquecido pela falta de comida e que só por isso lhe procura menos, pior seria se não a procurasse mais. Além do mais isso não tem importância; quer dizer, na natureza a gente vê que muitas vezes homens e mulheres quando não se amam por determinada razão fariam diferente, daquilo que não se fala, mas só por tolice porque é natural, eu digo abertamente: eu pego e faço, você também, é natural e passa logo, quase só para rir, acontece muito, que aquele ou aquela não dorme com nenhum homem, mas em espírito trepa com todos, e por aí afora.
Como você vive?
Therese Kaumann - Vivo mal.
Fatzer - Eu li isso num livro:
Os espíritos mais fortes e maus foram os que levaram a humanidade mais longe: eles não param de acender as paixões adormecidas -qualquer sociedade organizada adormece as paixões-, eles sempre despertavam o sentido da comparação, da contradição, do desejo pelo novo, pelo ousado, não experimentado, forçavam as pessoas a colocar opinião contra opinião, ideal contra ideal. Com as armas, com a queda das fronteiras, na maioria das vezes ferindo a boa moral mas também por novas religiões e novas morais! A mesma maldade está em cada professor e pregador do novo, que difama um conquistador ainda que se manifeste com mais sutileza, por não colocarem logo os músculos em movimento, e por isso mesmo não são tão difamados! Mas o novo sob todos os aspectos é o mal, que quer conquistar derrubar os velhos marcos das fronteiras e a velha e boa moral; e só o velho é bom! As pessoas boas de todos os tempos são aquelas que enterram os velhos pensamentos nas profundezas e com eles carregam frutos, os camponeses do espírito. Mas toda terra acaba sendo explorada, e o canteiro do mal tem sempre que voltar.
Desamarra essa corda de mim.
[Therese Kaumann desamarra Fatzer; ele a seduz"
E ele agarra seus peitos debaixo da blusa, a amável mão rude persuade-a, cuida para que eles levantem e fiquem eriçados e agarra cuidadosamente seu traseiro e o balança alegremente e percebe que as coxas bem apertadas se abrem e a mão dela o puxa para si e a tão velha brincadeira se renova e também o apreciado movimento.
[Transam. Enquanto isso, os outros três lêem o comentário sobre o ensinamento do amor carnal, procurando desviar a atenção do público do ato sexual"
Coro - Agem incorretamente, aqueles que apresentam ao aprendiz o sexo como sendo natural, limpo, inofensivo e compreensível. Mas têm razão aqueles que provam não ser natural, portanto sujo, perigoso e incompreensível. Todos sabem que o sexo não é natural entre todos os animais pois eles vivem a maior parte de suas vidas sem sexo. Mas não é para distanciar o aprendiz do amor que se deve apresentar-lhe o sexo como tão sujo e não natural, mas para dizer a ele a verdade. Não para despertar nele aversão, mas para ensinar o medo. Por isso a melhor maneira de ensinar o amor sexual é aquela que os meninos fazem entre si: falam rindo e encalorados do sexo e desenham grandes símbolos sujos nas paredes das casas, os mesmos usados pelas religiões da mais sábia de todas as raças. E esse tipo de ensinamento é bom porque circula também entre aqueles que não só podem se tocar com palavras, mas também com as mãos. Mas por que o sexo não é natural? Muitos dizem que deve ser horrível viver para gerar vida e só um grave desejo é que compele o homem a fazê-lo. Isso parece comprovar o luto depois do ato comum a todos os animais. Também as contrações da mulher durante o ato parecendo estar doente, embora essa coisa doentia produza desejo, não deixa de ser doente.
Kaumann [grita" - Ele tem que sair.
Fatzer - Imaginem que uma mulher tenha que me soltar, como eu poderia pagar?
Therese Kaumann [grita" - Eu exijo que todos saiam.
Kaumann - Agora sumam da minha casa para que eu viva só com a minha mulher porque ela exige isso e a minha casa é a casa dela.
Coro - Kaumann irrompe num discurso sobre a propriedade.
Kaumann [para o gramofone" -°Se você sempre usa a minha mulher, será um milagre que a amizade sofra. Vocês acham que isso não provoca dor em mim, se eu não espancar você até tirar o couro.
Coro - Eles discutem, sentados à volta de uma mesa. Anoiteceu; um deles elabora uma tese revolucionária sobre liberdade sexual e: se for por necessidade, a gente tem de deixar.
Mas daí eles têm de ir para fora. Chove. As teses são recolhidas, aí a fome entra em discussão.
[Chuva"
Büsching - É, se não chovesse e não tivesse geada e frio, na manhã tudo andaria, como anda.
Fatzer - Desde que cometi o que vocês chamam de meu crime, minha cabeça está mais clara e estou mais forte. É como se aquele que em tempos difíceis se preocupa em ter descendência recebesse da natureza a arte de cuidar dela. Por isso ofereço a vocês o que elaborei para nossa situação. Meu plano que vai render comida para vocês por semanas pois trata-se de prestar serviço caseiro, ou seja, prepararmo-nos para uma longa ocupação, também a mulher que usei há pouco, usá-la para atrair trabalhadores. Em parte para acostumar os habitantes dessa casa, que, de agora em diante, nós vamos habitar por um bom tempo, aos rostos estranhos vão dizer que vão visitar a sra. Kaumann. Ela vai dar em parte para descobrir deles o quanto as fábricas estão insatisfeitas e para reforçar a sua insatisfação da qual depende muita coisa.
Kaumann - Você está dizendo isso porque está farto dela.
Büsching [vai até Fatzer" - Se for por necessidade, a gente tem de deixar. Mas o que nós precisamos, isso você tem de conseguir, Fatzer.
Koch - Nós estamos oprimidos demais vivendo debaixo do chão das sobras da carne, mal podendo respirar.Tão desumano, isso não pode durar. Tudo muda, e nós não podemos mudar?
Sobre nós cada pedra está mudando e o rio leva a casa que nos abriga. Porque pelas circunstâncias o seu teto se tornou mais do que sua cama para nós. Seu leito é mais importante do que você, porque nele a chuva não cai, nem o olhar das pessoas.E se não podemos pagar a você pela moradia com abraços enfraquecidos pela fome ou porque somos muitos.
Devemos, se uma refeição com carne ou o calor de um corpo nos forçar, vir até você. Mas mais importante por ser mais vital é a união e por isso é que também não podemos agarrar a carne da mulher e esperar que ela nos asse o pão, mas precisamos apelar para sua razão, se fraca ou forte.



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