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Obra expande caráter "laboratorial" de Brecht
SÉRGIO DE CARVALHO
ESPECIAL PARA A FOLHA
É costume se referir ao texto
"O Declínio do Egoísta Johann Fatzer" pelo seu nome de
sugestão científica, o "Fragmento
Fatzer". De fato existe algo de radicalmente experimental nessa
peça, da qual Brecht só publicou
um núcleo, constituído de três
partes e um coro, em 1931.
Nunca completado, o "Fragmento Fatzer" se tornou uma espécie de referência necessária
quando o dramaturgo Heiner
Müller apontou ali um sentido
modelar, não só para sua obra
pessoal, como para toda a dramaturgia política do século 20.
A nova edição do material, organizada por Müller e traduzida
por Christine Röhrig, reúne dezenas de esboços dessa obra-projeto, amplificando seu sentido "laboratorial", já apontado por
Brecht em seu "Diário de Trabalho", em fevereiro de 1939: "De
início se poderia estudar os fragmentos "Fatzer" e "A Padaria". Tecnicamente esses dois fragmentos
são os mais elevados modelos".
Escrito entre 27 e 29, época das
peças didáticas, talvez os exercícios mais vanguardistas do teatro
moderno, "Fragmentos Fatzer"
reúne uma pesquisa dos ritmos
da crise da ordem burguesa e a
procura de novas relações estéticas com o espectador.
A incompletude não permite
afirmar se Brecht pensou "Fatzer"
como uma peça didática. Mas temas recorrentes dessa fase, como
o da "demolição do heroísmo",
atravessam o conjunto dos fragmentos.
A questão da "despersonalização como escola de revolução"
aparece na história desses quatro
soldados que fogem da guerra, escondem-se num porão e permanecem juntos enquanto um deles
tenta conseguir comida para o
grupo. No núcleo da peça, o passeio desse egoísta Johann Fatzer
em busca de carne e seu fracasso
ao se envolver numa briga com os
açougueiros. É espancado diante
dos olhos dos amigos desertores,
que fingem não conhecê-lo.
A organização de Heiner Müller
destaca uma complexa dialética
entre o individualismo de Fatzer e
o projeto coletivista de Koch. Fatzer é movido por uma "vontade
que só dá para o crime", de tendências anarquistas. Repudia
aqueles que pretendem que "todos sejam iguais".
No lado de Koch, a busca da disciplina partidária, da decisão a favor do terror. Fatzer é um ponto
geométrico, os outros, uma linha.
Nenhum deles pode ter três dimensões enquanto determinados
pela fome, enquanto o teto foge
sobre suas cabeças, enquanto exilados da força da massa. Como
resposta ao embrutecimento, vemos a tentativa vã de constituir
um tipo de soviete, em que "a falta
de união conduz o sistema ao voto da maioria".
Com "Fatzer" temos estilhaços
de uma belíssimo e perturbador
poema feito de história. Uma época é lançada no papel, e sua materialidade transborda. São expostos pedaços dos corpos destruídos na Primeira Guerra Mundial.
Distinguimos os rumores da tentativa revolucionária abortada na
Alemanha pela cisão dos socialistas e pelo assassinato de Rosa Luxemburgo e Liebknecht. Ouvimos algo das mentiras da social-democracia e também uma crítica
àquilo que se mostrou depois como erro histórico, a divisão permanente do movimento trabalhista internacional em favor de
um modelo de partido de vanguarda leninista, feito de "revolucionários profissionais".
Os grandes temas do século 20,
a guerra e o desemprego, entram
em cena na ótica nítida de que esse estado de coisas só prejudica os
que estão embaixo. "Com nosso
braço, nossa pessoa é combatida",
diz um verso de uma peça cuja
ambiguidade não esconde a certeza de que a modificação social impõe a questão: "Com quem se
agrupar?".
Em "Fatzer" formulam-se diferentes soluções para o problema
de como organizar a cena numa
perspectiva antiburguesa. Na representação, ativa ou passiva, do
proletariado, surgem no palco os
coros do "homem-massa", cuja
mecanicidade imposta pelo medo
se reverte na força cênica da esperança. Mas surgem também os
"tipos" populares mais vivos, de
interesses desalienantes, numa
posição crítica entre o indivíduo e
o grupo.
É pelos "tipos femininos" da peça que podemos contemplar à
distância o comportamento de
seus "heróis". É como se, nos tempos de guerra, só as mulheres estivessem vivas, pois nas fronteiras
existem homens enterrados, que
não se distinguem do chão. Quando a sra. Kaumann, a mulher por
quem o marido não tem mais desejo, é prostituída pelos quatro
desertores e se torna objeto de
uma discussão sobre a natureza
da propriedade, se individual ou
coletiva, são os protagonistas do
debate que se transformam em
objeto de nosso julgamento. Pela
situação delas se aponta a consciência coletiva do sofrimento.
Nos fragmentos também utópicos de "Fatzer", lê-se que a palavra proletariado já significou um
dia a esperança de que a vida pode
viver. É na busca da transformação do Estado em algo conforme
às necessidades da vida que um
dos coros finais avalia a relação
entre Fatzer e seus amigos: "Ao
seduzi-los para aniquilá-los, ele os
aniquila. Certo seria nunca perder
a conexão com o amanhã".
Para além da fantasmagoria da
peça, a vida depende de uma luta
histórica.
Sérgio de Carvalho é diretor da Companhia do Latão, professor do departamento de artes cênicas da Unicamp e co-autor da peça "Auto dos Bons Tratos".
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