São Paulo, sábado, 06 de abril de 2002

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Obra expande caráter "laboratorial" de Brecht

SÉRGIO DE CARVALHO
ESPECIAL PARA A FOLHA

É costume se referir ao texto "O Declínio do Egoísta Johann Fatzer" pelo seu nome de sugestão científica, o "Fragmento Fatzer". De fato existe algo de radicalmente experimental nessa peça, da qual Brecht só publicou um núcleo, constituído de três partes e um coro, em 1931.
Nunca completado, o "Fragmento Fatzer" se tornou uma espécie de referência necessária quando o dramaturgo Heiner Müller apontou ali um sentido modelar, não só para sua obra pessoal, como para toda a dramaturgia política do século 20.
A nova edição do material, organizada por Müller e traduzida por Christine Röhrig, reúne dezenas de esboços dessa obra-projeto, amplificando seu sentido "laboratorial", já apontado por Brecht em seu "Diário de Trabalho", em fevereiro de 1939: "De início se poderia estudar os fragmentos "Fatzer" e "A Padaria". Tecnicamente esses dois fragmentos são os mais elevados modelos".
Escrito entre 27 e 29, época das peças didáticas, talvez os exercícios mais vanguardistas do teatro moderno, "Fragmentos Fatzer" reúne uma pesquisa dos ritmos da crise da ordem burguesa e a procura de novas relações estéticas com o espectador.
A incompletude não permite afirmar se Brecht pensou "Fatzer" como uma peça didática. Mas temas recorrentes dessa fase, como o da "demolição do heroísmo", atravessam o conjunto dos fragmentos.
A questão da "despersonalização como escola de revolução" aparece na história desses quatro soldados que fogem da guerra, escondem-se num porão e permanecem juntos enquanto um deles tenta conseguir comida para o grupo. No núcleo da peça, o passeio desse egoísta Johann Fatzer em busca de carne e seu fracasso ao se envolver numa briga com os açougueiros. É espancado diante dos olhos dos amigos desertores, que fingem não conhecê-lo.
A organização de Heiner Müller destaca uma complexa dialética entre o individualismo de Fatzer e o projeto coletivista de Koch. Fatzer é movido por uma "vontade que só dá para o crime", de tendências anarquistas. Repudia aqueles que pretendem que "todos sejam iguais".
No lado de Koch, a busca da disciplina partidária, da decisão a favor do terror. Fatzer é um ponto geométrico, os outros, uma linha. Nenhum deles pode ter três dimensões enquanto determinados pela fome, enquanto o teto foge sobre suas cabeças, enquanto exilados da força da massa. Como resposta ao embrutecimento, vemos a tentativa vã de constituir um tipo de soviete, em que "a falta de união conduz o sistema ao voto da maioria".
Com "Fatzer" temos estilhaços de uma belíssimo e perturbador poema feito de história. Uma época é lançada no papel, e sua materialidade transborda. São expostos pedaços dos corpos destruídos na Primeira Guerra Mundial. Distinguimos os rumores da tentativa revolucionária abortada na Alemanha pela cisão dos socialistas e pelo assassinato de Rosa Luxemburgo e Liebknecht. Ouvimos algo das mentiras da social-democracia e também uma crítica àquilo que se mostrou depois como erro histórico, a divisão permanente do movimento trabalhista internacional em favor de um modelo de partido de vanguarda leninista, feito de "revolucionários profissionais".
Os grandes temas do século 20, a guerra e o desemprego, entram em cena na ótica nítida de que esse estado de coisas só prejudica os que estão embaixo. "Com nosso braço, nossa pessoa é combatida", diz um verso de uma peça cuja ambiguidade não esconde a certeza de que a modificação social impõe a questão: "Com quem se agrupar?".
Em "Fatzer" formulam-se diferentes soluções para o problema de como organizar a cena numa perspectiva antiburguesa. Na representação, ativa ou passiva, do proletariado, surgem no palco os coros do "homem-massa", cuja mecanicidade imposta pelo medo se reverte na força cênica da esperança. Mas surgem também os "tipos" populares mais vivos, de interesses desalienantes, numa posição crítica entre o indivíduo e o grupo.
É pelos "tipos femininos" da peça que podemos contemplar à distância o comportamento de seus "heróis". É como se, nos tempos de guerra, só as mulheres estivessem vivas, pois nas fronteiras existem homens enterrados, que não se distinguem do chão. Quando a sra. Kaumann, a mulher por quem o marido não tem mais desejo, é prostituída pelos quatro desertores e se torna objeto de uma discussão sobre a natureza da propriedade, se individual ou coletiva, são os protagonistas do debate que se transformam em objeto de nosso julgamento. Pela situação delas se aponta a consciência coletiva do sofrimento.
Nos fragmentos também utópicos de "Fatzer", lê-se que a palavra proletariado já significou um dia a esperança de que a vida pode viver. É na busca da transformação do Estado em algo conforme às necessidades da vida que um dos coros finais avalia a relação entre Fatzer e seus amigos: "Ao seduzi-los para aniquilá-los, ele os aniquila. Certo seria nunca perder a conexão com o amanhã".
Para além da fantasmagoria da peça, a vida depende de uma luta histórica.


Sérgio de Carvalho é diretor da Companhia do Latão, professor do departamento de artes cênicas da Unicamp e co-autor da peça "Auto dos Bons Tratos".



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