São Paulo, quarta-feira, 06 de abril de 2005

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ANÁLISE

Um grande intérprete da sociedade americana

MOACYR SCLIAR
COLUNISTA DA FOLHA

Escrever a "grande novela americana" sempre foi o sonho dos escritores que vivem e viveram nos Estados Unidos. Aparentemente é um ideal que ainda não foi atingido, ao menos do ponto de vista dos críticos, mas muitos autores chegaram próximos a esse objetivo. Saul Bellow, morto ontem, é um exemplo maior.
Conheci-o há cerca de dez anos, quando, em um intercâmbio cultural, visitei vários escritores americanos. O encontro com Bellow era o que, para mim, se revestia de maior expectativa, afinal, tratava-se de um Nobel e de uma figura verdadeiramente lendária.
Eu havia lido vários de seus livros, começando pela primeira novela, "The Dangling Man", de 1944, pequena obra-prima sobre a angústia de um jovem que espera sua convocação para o Exército, continuando com "Agarre a Vida" (56), "Herzog" (64), "O Legado de Humboldt" (75), além de seu relato de uma viagem a Israel, "Jerusalém Ida e Volta" (75).
Era também fã de seus contos, vários dos quais foram reunidos em "Trocando os Pés pelas Mãos e Outras Histórias", de 1984. Mas, mesmo conhecendo boa parte de sua obra (ou talvez exatamente por isso), aquela era uma visita que me intimidava. De qualquer modo, lá fomos, minha mulher e eu, naquela gélida manhã de inverno, para o encontro que seria realizado na Universidade de Chicago, onde ele lecionava.
A conversa acabou tomando um rumo inesperado. Bellow, um homem elegante e amável, quis saber de onde eu era, de onde vinham meus pais. Ficou encantado ao saber que eu era filho de imigrantes judeus vindos da Rússia; era essa também sua origem. Só que os pais dele tinham se dirigido para o Canadá, onde nascera, na cidade de Lachine, em 1915, radicando-se depois nos EUA.
Claramente era um escritor que, sendo profundamente americano (um escritor de Chicago, para ser mais preciso), se valia de sua herança cultural para entender melhor a realidade do país. Não era um caso isolado; o mesmo acontecia com outros escritores -Norman Mailer, Philip Roth- que inauguraram, nas palavras do crítico Irving Howe, um novo tipo de regionalismo. Não geográfico, como aquele pelo qual William Faulkner retratou o sul dos Estados Unidos, mas étnico.
A verdade é que o imigrante recebe uma espécie de compensação por sua condição de marginal da cultura; ele é dono de um olhar privilegiado, um olhar que lhe permite enxergar a realidade do país de maneira diferente. Muitos descobrem assim novas oportunidades de ascensão econômica e social, caso dos imigrantes que criaram a indústria cinematográfica. Outros tornam-se revolucionários (Bellow tinha sido trotskista), e outros enveredam pelo caminho da literatura e da arte.
Através do prisma do judaísmo, Bellow tornou-se um notável intérprete da sociedade americana. Um intérprete coerente, que não fazia concessões. Quando lhe perguntei por que um escritor tão bem-sucedido continuava dando aulas de literatura ele respondeu: "Porque não sou um autor comercial. Prefiro ter meu sustento assegurado de outra maneira".
Essa coerência, associada a um soberbo domínio da forma literária e a uma capacidade de revelar a condição humana pela ficção, garantiram a Bellow um lugar na literatura que ele jamais perderá.


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