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ANÁLISE
Um grande intérprete da sociedade americana
MOACYR SCLIAR
COLUNISTA DA FOLHA
Escrever a "grande novela americana" sempre foi o sonho dos
escritores que vivem e viveram
nos Estados Unidos. Aparentemente é um ideal que ainda não
foi atingido, ao menos do ponto
de vista dos críticos, mas muitos
autores chegaram próximos a esse objetivo. Saul Bellow, morto
ontem, é um exemplo maior.
Conheci-o há cerca de dez anos,
quando, em um intercâmbio cultural, visitei vários escritores americanos. O encontro com Bellow
era o que, para mim, se revestia de
maior expectativa, afinal, tratava-se de um Nobel e de uma figura
verdadeiramente lendária.
Eu havia lido vários de seus livros, começando pela primeira
novela, "The Dangling Man", de
1944, pequena obra-prima sobre a
angústia de um jovem que espera
sua convocação para o Exército,
continuando com "Agarre a Vida" (56), "Herzog" (64), "O Legado de Humboldt" (75), além de
seu relato de uma viagem a Israel,
"Jerusalém Ida e Volta" (75).
Era também fã de seus contos,
vários dos quais foram reunidos
em "Trocando os Pés pelas Mãos
e Outras Histórias", de 1984. Mas,
mesmo conhecendo boa parte de
sua obra (ou talvez exatamente
por isso), aquela era uma visita
que me intimidava. De qualquer
modo, lá fomos, minha mulher e
eu, naquela gélida manhã de inverno, para o encontro que seria
realizado na Universidade de Chicago, onde ele lecionava.
A conversa acabou tomando
um rumo inesperado. Bellow, um
homem elegante e amável, quis
saber de onde eu era, de onde vinham meus pais. Ficou encantado ao saber que eu era filho de
imigrantes judeus vindos da Rússia; era essa também sua origem.
Só que os pais dele tinham se dirigido para o Canadá, onde nascera, na cidade de Lachine, em 1915,
radicando-se depois nos EUA.
Claramente era um escritor que,
sendo profundamente americano
(um escritor de Chicago, para ser
mais preciso), se valia de sua herança cultural para entender melhor a realidade do país. Não era
um caso isolado; o mesmo acontecia com outros escritores
-Norman Mailer, Philip Roth-
que inauguraram, nas palavras do
crítico Irving Howe, um novo tipo
de regionalismo. Não geográfico,
como aquele pelo qual William
Faulkner retratou o sul dos Estados Unidos, mas étnico.
A verdade é que o imigrante recebe uma espécie de compensação por sua condição de marginal
da cultura; ele é dono de um olhar
privilegiado, um olhar que lhe
permite enxergar a realidade do
país de maneira diferente. Muitos
descobrem assim novas oportunidades de ascensão econômica e
social, caso dos imigrantes que
criaram a indústria cinematográfica. Outros tornam-se revolucionários (Bellow tinha sido trotskista), e outros enveredam pelo caminho da literatura e da arte.
Através do prisma do judaísmo,
Bellow tornou-se um notável intérprete da sociedade americana.
Um intérprete coerente, que não
fazia concessões. Quando lhe perguntei por que um escritor tão
bem-sucedido continuava dando
aulas de literatura ele respondeu:
"Porque não sou um autor comercial. Prefiro ter meu sustento
assegurado de outra maneira".
Essa coerência, associada a um
soberbo domínio da forma literária e a uma capacidade de revelar
a condição humana pela ficção,
garantiram a Bellow um lugar na
literatura que ele jamais perderá.
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