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ARTIGO
É hora de corrigir, e não de centralizar, as leis de incentivo
TEIXEIRA COELHO
ESPECIAL PARA A FOLHA
Uma idéia distorcida sobre o
papel das leis de incentivo
fiscal na cultura está há tempos no
ar. Delas se diz que entregaram a
concepção e execução da política
cultural ao "mercado", o que seria
inaceitável. É apenas em parte assim. O que não se vê ou não se
quer ver é que essas leis são, primeiro, uma providência de empoderamento da sociedade civil:
devolvem-lhe (parcialmente) poderes de decisão em matéria de
cultura que dela não deviam ter
sido retirados. Não mais tem sentido, neste ponto da história das
sociedades democráticas, um Estado ou um governo que concentre em suas mãos o direito de decidir sobre a cultura da e para a
sociedade.
Por outro lado, é simplismo sugerir que o "mercado" se opõe à
ou não integra a sociedade civil,
que ele representa tão bem ou tão
mal quanto o Estado ou o governo.
"Mercado", cultura e sociedade
são indissociáveis na história. Fazem parte do "mercado" não só as
empresas e os empresários, como
se insiste, mas também os artistas,
os críticos e historiadores, as associações de classe (como o imprescindível Sesc) e o público. As
atuais leis de incentivo permitem
desequilíbrios, é certo. Isto se corrige com sua mudança, não com
sua anulação ou seu anestesiamento. Conhecida distorção é a
que permite a corporações privadas usá-las para a criação de pólos
agigantados que funcionam, primeiro, como alavanca do próprio
nome. Mas uma mudança nas leis
resolve o problema sem anular o
reconhecimento à sociedade civil
do direito de escolher sua cultura.
O ponto é este: as leis de incentivo multiplicaram os focos da cultura. As grandes estatais, que lamentavelmente acabam de ser
postas sob rígido controle do governo central (e nem mesmo sob
as ordens do MinC, o que já seria
um problema, mas pelo menos
um problema "em casa") e viram
diminuída sua capacidade de escolher o que apoiar, têm prestado
bons serviços à cultura. A sociedade civil vem sendo aí representada em proporção inédita na história do país.
Imaginar que o governo central,
através de uma diretriz predominante ou única, possa atuar mais e
melhor contraria a experiência
histórica. Os tempos são os da diversidade cultural, que não se
consegue com uma ação centralizada quanto ao conteúdo do que
incentivar e à concentração dos
recursos disponíveis num único
foco de poder. De outro lado, é
verdade que os grandes centros
culturais como os do Banco do
Brasil (e outros) não teriam motivo convincente para existir. Talvez se pudesse, antes de criá-los
do nada como o foram, amparar
boas entidades públicas já existentes e que continuam a definhar
indignamente. Mas, ainda assim,
fizeram mais do que muita administração central fez e pode vir a
fazer com iguais recursos. E quem
sabe poderiam continuar existindo ao lado de instituições públicas
que viessem a ser fortalecidas pelas mesmas leis de que agora são
privadas.
Mesmo sem ampliar seu espaço
atual e sem centralizar decisões, se
quiser atuar na cultura o governo
federal pode fazer muito que não
foi feito antes. Por exemplo, coordenar a ação e os efeitos das leis de
incentivo. Se num ano as ações se
concentram numa linguagem ou
região, no seguinte pode-se conceder um incentivo maior para
outras linguagens ou regiões, sem
diminuir o empoderamento da
sociedade civil e sem anular a presença reguladora do Estado, que
conta ainda com o Fundo Nacional de Cultura para cobrir áreas
não alcançadas pelas leis. Essa regulação seria bem-vinda, ainda
por exemplo, mas exemplo forte,
na esfera da TV, responsabilidade
da qual os sucessivos governos
democráticos vêm fugindo, levando a TV a virar assunto de Telecomunicações como se fosse
mera questão de técnica, formato
sem conteúdo. Outra aberração.
Mas sobre esse ponto nada se disse no passado recente e nada se
diz ainda, agora.
Pôr dinheiro nas mãos do governo federal, sob uma diretriz
centralizadora, com o pretexto de
combater o "mercado", sem se dizer exatamente onde esse dinheiro será empregado, como e com a
participação de quem, não tranquiliza nem anima. Cultura não é
avião, um tema só para especialistas. A cultura, para existir, depende de larga e continuada conversa
entre as partes interessadas, que
são muitas. Essa conversa, mal ou
bem, existe no atual sistema. Não
se fez ainda uma avaliação correta
de seus resultados. Mesmo com
suas deficiências, é provável que o
esquema atual venha atendendo a
diferentes expectativas da sociedade civil, embora não todas, de
um modo inacessível a qualquer
burocracia passada, atual ou futura do governo central. Essa conversa precisa ser mantida. As leis
de incentivo foram um passo considerável no processo de abertura
cultural. Corrigir, sim, é hora.
Centralizar, outra vez, não. Parte
da sociedade civil já se organizou
para a cultura, seria desperdício
anular esse impulso e o que se
conseguiu. O novo governo tem
uma oportunidade singular para
desmentir a idéia, sempre atual,
de que a política serve para impedir que as pessoas cuidem de seus
próprios interesses. Na cultura,
cuidar dos próprios interesses é
possível. Com a colaboração do
governo, não com o governo interposto entre a cultura e as pessoas.
Teixeira Coelho é professor titular de
política cultural da ECA e ex-diretor do MAC-USP
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