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São Paulo, terça-feira, 06 de maio de 2003

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ARTIGO

É hora de corrigir, e não de centralizar, as leis de incentivo

TEIXEIRA COELHO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Uma idéia distorcida sobre o papel das leis de incentivo fiscal na cultura está há tempos no ar. Delas se diz que entregaram a concepção e execução da política cultural ao "mercado", o que seria inaceitável. É apenas em parte assim. O que não se vê ou não se quer ver é que essas leis são, primeiro, uma providência de empoderamento da sociedade civil: devolvem-lhe (parcialmente) poderes de decisão em matéria de cultura que dela não deviam ter sido retirados. Não mais tem sentido, neste ponto da história das sociedades democráticas, um Estado ou um governo que concentre em suas mãos o direito de decidir sobre a cultura da e para a sociedade.
Por outro lado, é simplismo sugerir que o "mercado" se opõe à ou não integra a sociedade civil, que ele representa tão bem ou tão mal quanto o Estado ou o governo.
"Mercado", cultura e sociedade são indissociáveis na história. Fazem parte do "mercado" não só as empresas e os empresários, como se insiste, mas também os artistas, os críticos e historiadores, as associações de classe (como o imprescindível Sesc) e o público. As atuais leis de incentivo permitem desequilíbrios, é certo. Isto se corrige com sua mudança, não com sua anulação ou seu anestesiamento. Conhecida distorção é a que permite a corporações privadas usá-las para a criação de pólos agigantados que funcionam, primeiro, como alavanca do próprio nome. Mas uma mudança nas leis resolve o problema sem anular o reconhecimento à sociedade civil do direito de escolher sua cultura.
O ponto é este: as leis de incentivo multiplicaram os focos da cultura. As grandes estatais, que lamentavelmente acabam de ser postas sob rígido controle do governo central (e nem mesmo sob as ordens do MinC, o que já seria um problema, mas pelo menos um problema "em casa") e viram diminuída sua capacidade de escolher o que apoiar, têm prestado bons serviços à cultura. A sociedade civil vem sendo aí representada em proporção inédita na história do país.
Imaginar que o governo central, através de uma diretriz predominante ou única, possa atuar mais e melhor contraria a experiência histórica. Os tempos são os da diversidade cultural, que não se consegue com uma ação centralizada quanto ao conteúdo do que incentivar e à concentração dos recursos disponíveis num único foco de poder. De outro lado, é verdade que os grandes centros culturais como os do Banco do Brasil (e outros) não teriam motivo convincente para existir. Talvez se pudesse, antes de criá-los do nada como o foram, amparar boas entidades públicas já existentes e que continuam a definhar indignamente. Mas, ainda assim, fizeram mais do que muita administração central fez e pode vir a fazer com iguais recursos. E quem sabe poderiam continuar existindo ao lado de instituições públicas que viessem a ser fortalecidas pelas mesmas leis de que agora são privadas.
Mesmo sem ampliar seu espaço atual e sem centralizar decisões, se quiser atuar na cultura o governo federal pode fazer muito que não foi feito antes. Por exemplo, coordenar a ação e os efeitos das leis de incentivo. Se num ano as ações se concentram numa linguagem ou região, no seguinte pode-se conceder um incentivo maior para outras linguagens ou regiões, sem diminuir o empoderamento da sociedade civil e sem anular a presença reguladora do Estado, que conta ainda com o Fundo Nacional de Cultura para cobrir áreas não alcançadas pelas leis. Essa regulação seria bem-vinda, ainda por exemplo, mas exemplo forte, na esfera da TV, responsabilidade da qual os sucessivos governos democráticos vêm fugindo, levando a TV a virar assunto de Telecomunicações como se fosse mera questão de técnica, formato sem conteúdo. Outra aberração. Mas sobre esse ponto nada se disse no passado recente e nada se diz ainda, agora.
Pôr dinheiro nas mãos do governo federal, sob uma diretriz centralizadora, com o pretexto de combater o "mercado", sem se dizer exatamente onde esse dinheiro será empregado, como e com a participação de quem, não tranquiliza nem anima. Cultura não é avião, um tema só para especialistas. A cultura, para existir, depende de larga e continuada conversa entre as partes interessadas, que são muitas. Essa conversa, mal ou bem, existe no atual sistema. Não se fez ainda uma avaliação correta de seus resultados. Mesmo com suas deficiências, é provável que o esquema atual venha atendendo a diferentes expectativas da sociedade civil, embora não todas, de um modo inacessível a qualquer burocracia passada, atual ou futura do governo central. Essa conversa precisa ser mantida. As leis de incentivo foram um passo considerável no processo de abertura cultural. Corrigir, sim, é hora. Centralizar, outra vez, não. Parte da sociedade civil já se organizou para a cultura, seria desperdício anular esse impulso e o que se conseguiu. O novo governo tem uma oportunidade singular para desmentir a idéia, sempre atual, de que a política serve para impedir que as pessoas cuidem de seus próprios interesses. Na cultura, cuidar dos próprios interesses é possível. Com a colaboração do governo, não com o governo interposto entre a cultura e as pessoas.


Teixeira Coelho é professor titular de política cultural da ECA e ex-diretor do MAC-USP


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