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FERNANDO BONASSI
Temporada de caça
Senhoras e senhores, lamentamos informar que, na
última noite de Lua cheia, um facínora gelatinoso escorregou pelo
meio das barras onde estava encarcerado, desceu pelos esgotos
que lhe serviam de único alívio e
materializou-se deste lado do
mundo, em plena sarjeta.
A cidade, inquieta e enojada, se
arma de desinfetantes, cadeados
e pizzas de nove reais esperando o
pior. Os apresentadores de televisão se esgoelam em pedidos para
que se redobre o alerta quanto ao
"perigo do elemento perigoso que
apresenta alta periculosidade".
Seu objetivo: roubar as pistolas
automáticas dos garanhões civilizados em carros importados, estuprar suas filhas educadas em academias de ginástica, gozar
com suas mulheres em motéis de
periferia e rir da nossa cara de babacas assustadiços. Ele teria decapitado minhocas e baratas, teria
colocado gatos na máquina de lavar, teria cuspido no prato de merenda; teria mijado num copo de canjica, teria ateado fogo em cinco namoradas que agora não largam do seu pé e ainda reclamam que ele não liga mais para elas (os
celulares clonados que o digam, já que foram apreendidos...).
O facínora, parido entre blocos e escadões, entre grades e portões,
tem os cabelos em pé de susto, os
olhos cristalinos de maldade através dos óculos escuros de tempestade, os dentes branquinhos financiados pelo tráfico a perder de
vista, a boca de quem tem um último pedido a fazer e cicatrizes
por todo o corpo (algumas invisíveis). O facínora ainda apresenta
tiques nervosos, mas nunca apresentou declaração de renda. Ele
respira por dentro de uma lata de solvente, fuma cigarros paraguaios, alimenta-se de chocolate granulado e fígado cru, bebe refrigerante diet e sangue. Foi visto simultaneamente crivado de balas
no PS do HC, trocando tiros com
a PM de Sergipe, jogando futebol
em Parelheiros e nos fundos de
uma fotografia amarelada. Os
efeitos desastrosos de seus movimentos já se fazem notar por todo
o planeta, afetando o equilíbrio
entre os povos: os coreanos estão
desconfiados, os chineses estão
pegando pneumonia; os britânicos estão pegando um bronzeado
e os iraquianos o gosto pelo protesto, enquanto americanos tossem com a poeira levantada pela guerra acabada.
As bolsas e os seios não param
de cair, causando graves lucros
aos cirurgiões plásticos de capital
aberto a negociações de todo tipo.
As moedas alienígenas são arremessadas pro espaço siderado,
enquanto nas festas das embaixadas canapés e contratos se oferecem de bom gosto. O gado emagrece a olhos vistos e os juros devem subir até o pescoço, afogando
o crédito. A produção agrícola pode sofrer um baque no desaviso
da entressafra; os anti-depressivos e a volúpia devem escalar as
prioridades das autoridades...
O facínora desregula as antenas
parabólicas e atrapalha as idéias
dos pensadores, deixando todos
cheios de fantasmas. Os religiosos,
por exemplo, estão descrentes de
nossa capacidade de reação e rezam por essas almas, como sempre. Estima-se às centenas os cadáveres espalhados pela sanha do
facínora. Sabe-se que ele tem predileção pela crueldade estampada nos jornais dos aviões mal pagos, que ficam retidos nos aeroportos distantes em operações ultra-secretas, imobilizando o turismo com o tremor das agências de
viagem. Não bastasse o caos dos
semáforos descontrolados, os ônibus e as cadelas no cio ameaçam
com a paralisação dos cruzamentos.
Como o facínora não respeita
qualquer princípio de propriedade, as empresas de seguro estão
subindo as taxas de risco pra lidar
com o que quer que seja. O mesmo acontece com os planos de
saúde, os bancos, as prostitutas e
os publicitários. Por essas e outras, todas as viaturas foram disparadas para os becos conhecidos e os helicópteros, no ar, impedem
o sono dos tranqüilos. As tropas
especiais encontram-se de prontidão pra qualquer eventualidade
de menor envergadura. A defesa
civil poderá atuar em caso de tumulto organizado. Os serviços de
inteligência já estão trançando os
planos dessa contingência...
As escolas devem expelir as
crianças cada vez mais cedo (recomenda-se que elas sejam acompanhadas pelos pais e que os pais sejam acompanhados pelos seus
pais e estes pelos pais deles, sucessivamente, para que ninguém se
perca de repetir a mesma coisa).
Os empregos serão fatiados entre
os chefes de família, cabendo a
cada um a ração que o mercado
amassou. Todas as bolsas serão
revistadas, todas as reputações serão repassadas, todas as saias serão levantadas e as barrigas das
mulheres grávidas apalpadas sem
vergonha pelos agentes da lei. A
lei ainda deverá ser discutida,
mas enquanto isso não acontece,
vamos de medida provisória mesmo, já que os congressos que se
reúnem não sabem o que recomendar além do aumento no próprio salário. Todos os recursos serão utilizados. Novos empréstimos deverão ser contraídos. Todas as lavanderias serão vasculhadas por baixo das roupas sujas. As favelas espremidas serão iluminadas vinte e quatro horas
por dia. Os pinguços serão acossados. Os miseráveis visitados por
missões de caridade. As cestas básicas só serão entregues mediante
atestado de bons antecedentes.
Quem não tiver endereço fixo estará entregue à sorte dos elementos. As árvores serão cadastradas.
As praças serão pintadas de branco. Os satélites militares e meteorológicos também auxiliarão nas buscas.
O facínora não pode mais conviver entre os vivos. O facínora terá, à partir de hoje, seu rosto exibido em cadeia nacional. Ele será
muito famoso. Depois será preso.
Depois será morto. Então dormiremos em paz. Amém.
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