UOL


São Paulo, terça-feira, 06 de maio de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

FERNANDO BONASSI

Temporada de caça

Senhoras e senhores, lamentamos informar que, na última noite de Lua cheia, um facínora gelatinoso escorregou pelo meio das barras onde estava encarcerado, desceu pelos esgotos que lhe serviam de único alívio e materializou-se deste lado do mundo, em plena sarjeta.
A cidade, inquieta e enojada, se arma de desinfetantes, cadeados e pizzas de nove reais esperando o pior. Os apresentadores de televisão se esgoelam em pedidos para que se redobre o alerta quanto ao "perigo do elemento perigoso que apresenta alta periculosidade".
Seu objetivo: roubar as pistolas automáticas dos garanhões civilizados em carros importados, estuprar suas filhas educadas em academias de ginástica, gozar com suas mulheres em motéis de periferia e rir da nossa cara de babacas assustadiços. Ele teria decapitado minhocas e baratas, teria colocado gatos na máquina de lavar, teria cuspido no prato de merenda; teria mijado num copo de canjica, teria ateado fogo em cinco namoradas que agora não largam do seu pé e ainda reclamam que ele não liga mais para elas (os celulares clonados que o digam, já que foram apreendidos...).
O facínora, parido entre blocos e escadões, entre grades e portões, tem os cabelos em pé de susto, os olhos cristalinos de maldade através dos óculos escuros de tempestade, os dentes branquinhos financiados pelo tráfico a perder de vista, a boca de quem tem um último pedido a fazer e cicatrizes por todo o corpo (algumas invisíveis). O facínora ainda apresenta tiques nervosos, mas nunca apresentou declaração de renda. Ele respira por dentro de uma lata de solvente, fuma cigarros paraguaios, alimenta-se de chocolate granulado e fígado cru, bebe refrigerante diet e sangue. Foi visto simultaneamente crivado de balas no PS do HC, trocando tiros com a PM de Sergipe, jogando futebol em Parelheiros e nos fundos de uma fotografia amarelada. Os efeitos desastrosos de seus movimentos já se fazem notar por todo o planeta, afetando o equilíbrio entre os povos: os coreanos estão desconfiados, os chineses estão pegando pneumonia; os britânicos estão pegando um bronzeado e os iraquianos o gosto pelo protesto, enquanto americanos tossem com a poeira levantada pela guerra acabada.
As bolsas e os seios não param de cair, causando graves lucros aos cirurgiões plásticos de capital aberto a negociações de todo tipo. As moedas alienígenas são arremessadas pro espaço siderado, enquanto nas festas das embaixadas canapés e contratos se oferecem de bom gosto. O gado emagrece a olhos vistos e os juros devem subir até o pescoço, afogando o crédito. A produção agrícola pode sofrer um baque no desaviso da entressafra; os anti-depressivos e a volúpia devem escalar as prioridades das autoridades...
O facínora desregula as antenas parabólicas e atrapalha as idéias dos pensadores, deixando todos cheios de fantasmas. Os religiosos, por exemplo, estão descrentes de nossa capacidade de reação e rezam por essas almas, como sempre. Estima-se às centenas os cadáveres espalhados pela sanha do facínora. Sabe-se que ele tem predileção pela crueldade estampada nos jornais dos aviões mal pagos, que ficam retidos nos aeroportos distantes em operações ultra-secretas, imobilizando o turismo com o tremor das agências de viagem. Não bastasse o caos dos semáforos descontrolados, os ônibus e as cadelas no cio ameaçam com a paralisação dos cruzamentos.
Como o facínora não respeita qualquer princípio de propriedade, as empresas de seguro estão subindo as taxas de risco pra lidar com o que quer que seja. O mesmo acontece com os planos de saúde, os bancos, as prostitutas e os publicitários. Por essas e outras, todas as viaturas foram disparadas para os becos conhecidos e os helicópteros, no ar, impedem o sono dos tranqüilos. As tropas especiais encontram-se de prontidão pra qualquer eventualidade de menor envergadura. A defesa civil poderá atuar em caso de tumulto organizado. Os serviços de inteligência já estão trançando os planos dessa contingência...
As escolas devem expelir as crianças cada vez mais cedo (recomenda-se que elas sejam acompanhadas pelos pais e que os pais sejam acompanhados pelos seus pais e estes pelos pais deles, sucessivamente, para que ninguém se perca de repetir a mesma coisa). Os empregos serão fatiados entre os chefes de família, cabendo a cada um a ração que o mercado amassou. Todas as bolsas serão revistadas, todas as reputações serão repassadas, todas as saias serão levantadas e as barrigas das mulheres grávidas apalpadas sem vergonha pelos agentes da lei. A lei ainda deverá ser discutida, mas enquanto isso não acontece, vamos de medida provisória mesmo, já que os congressos que se reúnem não sabem o que recomendar além do aumento no próprio salário. Todos os recursos serão utilizados. Novos empréstimos deverão ser contraídos. Todas as lavanderias serão vasculhadas por baixo das roupas sujas. As favelas espremidas serão iluminadas vinte e quatro horas por dia. Os pinguços serão acossados. Os miseráveis visitados por missões de caridade. As cestas básicas só serão entregues mediante atestado de bons antecedentes. Quem não tiver endereço fixo estará entregue à sorte dos elementos. As árvores serão cadastradas. As praças serão pintadas de branco. Os satélites militares e meteorológicos também auxiliarão nas buscas.
O facínora não pode mais conviver entre os vivos. O facínora terá, à partir de hoje, seu rosto exibido em cadeia nacional. Ele será muito famoso. Depois será preso. Depois será morto. Então dormiremos em paz. Amém.


Texto Anterior: Música: Aos 78, Inezita leva "Viola" para passear
Próximo Texto: Festival de festivais: Berlim experimental
Índice


UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.