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ARTES PLÁSTICAS/ANÁLISE
De feitiço incomum, Lygia Pape inventou a "tetéia" na arte
LISETTE LAGNADO
ESPECIAL PARA A FOLHA
O que se espera de um artista
quando ele não está mais entre nós? As expectativas, como se
sabe, se multiplicam, ganham
sentidos que nem sempre foram
imaginados em vida. Na sociedade atual, por falta de ídolos, a
morte atua melhor como um fator de revelação do que como índice de desaparecimento.
A constatação piora quando se
trata de uma artista como Lygia
Pape, morta na última segunda-feira no Rio de Janeiro, que atuou
nas décadas da ditadura, desprovidas de publicações e registros
documentais. Até este ano, na Feira da Arco (Madri), era comum
ouvir de galeristas e curadores estrangeiros a capacidade do Brasil
de ignorar seus artistas históricos
ainda vivos, sem investir em pesquisas que pudessem servir de
plataforma pública para avaliar
suas experimentações.
"O Balé Neoconcreto" (1958), o
"Livro da Criação" (1960), o "Livro do Tempo" (1961) e "Divisor"
(1968), sem contar os planos de
luz de suas magníficas xilografias
de meados dos anos 50, constituem o núcleo essencial da obra
de Lygia Pape. Nesse seleto repertório, há também as "Tteias" (iniciadas na segunda metade dos
anos 70), linhas douradas tensionadas do chão até o teto formando uma rede imensa.
Nos últimos dez anos, é preciso
nuançar que os mares de Lygia
Pape foram aos poucos se deixando desbravar. Se quisermos especular, seu "Ovo" (1968), caixa coberta com tecido fino de plástico,
de dentro da qual "nascia" uma
pessoa, pode ser compreendida
ao lado das investigações da arte
japonesa do pós-guerra, notadamente do trabalho dos Grupos
Zero e Gutai.
É digno de nota que ela tenha tido a coragem, com uma simples
"Caixa de formigas", de refutar os
louros do neoconcretismo, do
qual foi uma de suas mais notáveis protagonistas: "As formigas
tinham o comportamento imprevisível de seres vivos. E elas realmente criaram vários problemas
durante a exposição, pois fugiam
e iam trepar sobre os quadros dos
outros artistas. Mas aí eu não denominava mais meus trabalhos
de neoconcretos".
O que parece paradoxal é observar que as peças mais contundentes dos anos 90 são aquelas que
guardam as referências com um
caráter construtivo. Quanto às
instalações, enveredam perigosamente para uma certa cenografia
ou alegoria. É como se a artista tivesse alcançado seu completo desenvolvimento logo de saída. Somente o tempo ajudará a descobrir quais influências foram ou
serão absorvidas pela produção
emergente.
Em texto para um catálogo de
1995, Paulo Herkenhoff avaliza
que ela teria antecipado a ativação
do campo visual. Como argumento, cita nada menos que os
"Metaesquemas" (1958) de Hélio
Oiticica. Mas o exemplo mais desconcertante, para quem conhece
as obras em questão, é o caso de
uma xilogravura em preto-e-branco de Lygia Pape (1959), confrontada com as pinturas de listras negras da série de "black
paintings" do jovem Frank Stella.
Circulação da arte
Conheci Lygia Pape em 1993,
quando estava organizando minha primeira curadoria (no Museu de Arte Contemporânea, em
São Paulo), por ocasião dos 80
anos do "Readymade" de Marcel
Duchamp. Ela prontamente atendeu ao meu pedido de empréstimo, defendendo a circulação da
arte e condenando as dificuldades
impostas por seus fiéis depositários. Na época, ela ainda integrava
a pequena equipe que fundou o
Projeto Hélio Oiticica para cuidar
e divulgar o acervo do artista,
morto em 1980, com quem realizou muitas proposições, entre o
cinema e os acontecimentos poéticos-urbanos.
Ela tinha uma presença que
conseguia ser simultaneamente
enigmática e generosa, algo que,
somado à sua pequena estatura e
à vivacidade do olhar, lhe conferia
um feitiço incomum. Sobramos
com a suspeita de que, como outros parceiros das décadas de 60 e
70, o reconhecimento de seu valor
só virá depois. Esse "depois" chegou, e nós perdemos a parceira,
mas o que ninguém lhe tira é que
ela inseriu o termo "tetéia" no vocabulário estético da arte brasileira. Como a "droguinha" de Mira
Schendel, "tetéia" é uma dessas
palavras abençoadas pela idéia da
invenção lúdica, delicada, despretensiosa. Por aqui, as lições de
modéstia são as que perduram.
Lisette Lagnado é doutora em filosofia
pela USP, crítica de arte e co-editora da
revista eletrônica "Trópico"
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