São Paulo, quinta-feira, 06 de maio de 2004

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ARTES PLÁSTICAS/ANÁLISE

De feitiço incomum, Lygia Pape inventou a "tetéia" na arte

LISETTE LAGNADO
ESPECIAL PARA A FOLHA

O que se espera de um artista quando ele não está mais entre nós? As expectativas, como se sabe, se multiplicam, ganham sentidos que nem sempre foram imaginados em vida. Na sociedade atual, por falta de ídolos, a morte atua melhor como um fator de revelação do que como índice de desaparecimento.
A constatação piora quando se trata de uma artista como Lygia Pape, morta na última segunda-feira no Rio de Janeiro, que atuou nas décadas da ditadura, desprovidas de publicações e registros documentais. Até este ano, na Feira da Arco (Madri), era comum ouvir de galeristas e curadores estrangeiros a capacidade do Brasil de ignorar seus artistas históricos ainda vivos, sem investir em pesquisas que pudessem servir de plataforma pública para avaliar suas experimentações.
"O Balé Neoconcreto" (1958), o "Livro da Criação" (1960), o "Livro do Tempo" (1961) e "Divisor" (1968), sem contar os planos de luz de suas magníficas xilografias de meados dos anos 50, constituem o núcleo essencial da obra de Lygia Pape. Nesse seleto repertório, há também as "Tteias" (iniciadas na segunda metade dos anos 70), linhas douradas tensionadas do chão até o teto formando uma rede imensa.
Nos últimos dez anos, é preciso nuançar que os mares de Lygia Pape foram aos poucos se deixando desbravar. Se quisermos especular, seu "Ovo" (1968), caixa coberta com tecido fino de plástico, de dentro da qual "nascia" uma pessoa, pode ser compreendida ao lado das investigações da arte japonesa do pós-guerra, notadamente do trabalho dos Grupos Zero e Gutai.
É digno de nota que ela tenha tido a coragem, com uma simples "Caixa de formigas", de refutar os louros do neoconcretismo, do qual foi uma de suas mais notáveis protagonistas: "As formigas tinham o comportamento imprevisível de seres vivos. E elas realmente criaram vários problemas durante a exposição, pois fugiam e iam trepar sobre os quadros dos outros artistas. Mas aí eu não denominava mais meus trabalhos de neoconcretos".
O que parece paradoxal é observar que as peças mais contundentes dos anos 90 são aquelas que guardam as referências com um caráter construtivo. Quanto às instalações, enveredam perigosamente para uma certa cenografia ou alegoria. É como se a artista tivesse alcançado seu completo desenvolvimento logo de saída. Somente o tempo ajudará a descobrir quais influências foram ou serão absorvidas pela produção emergente.
Em texto para um catálogo de 1995, Paulo Herkenhoff avaliza que ela teria antecipado a ativação do campo visual. Como argumento, cita nada menos que os "Metaesquemas" (1958) de Hélio Oiticica. Mas o exemplo mais desconcertante, para quem conhece as obras em questão, é o caso de uma xilogravura em preto-e-branco de Lygia Pape (1959), confrontada com as pinturas de listras negras da série de "black paintings" do jovem Frank Stella.

Circulação da arte
Conheci Lygia Pape em 1993, quando estava organizando minha primeira curadoria (no Museu de Arte Contemporânea, em São Paulo), por ocasião dos 80 anos do "Readymade" de Marcel Duchamp. Ela prontamente atendeu ao meu pedido de empréstimo, defendendo a circulação da arte e condenando as dificuldades impostas por seus fiéis depositários. Na época, ela ainda integrava a pequena equipe que fundou o Projeto Hélio Oiticica para cuidar e divulgar o acervo do artista, morto em 1980, com quem realizou muitas proposições, entre o cinema e os acontecimentos poéticos-urbanos.
Ela tinha uma presença que conseguia ser simultaneamente enigmática e generosa, algo que, somado à sua pequena estatura e à vivacidade do olhar, lhe conferia um feitiço incomum. Sobramos com a suspeita de que, como outros parceiros das décadas de 60 e 70, o reconhecimento de seu valor só virá depois. Esse "depois" chegou, e nós perdemos a parceira, mas o que ninguém lhe tira é que ela inseriu o termo "tetéia" no vocabulário estético da arte brasileira. Como a "droguinha" de Mira Schendel, "tetéia" é uma dessas palavras abençoadas pela idéia da invenção lúdica, delicada, despretensiosa. Por aqui, as lições de modéstia são as que perduram.


Lisette Lagnado é doutora em filosofia pela USP, crítica de arte e co-editora da revista eletrônica "Trópico"

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