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MÚSICA
Cantora mistura linguagens brasileiras em disco semi-independente gravado com violão, bandolim, gaita e bateria
Zélia Duncan vira outras na avenida Brasil
PEDRO ALEXANDRE SANCHES
ENVIADO ESPECIAL AO RIO
Na rua estreita em que mora e
de onde idealizou o show e o disco
"Eu me Transformo em Outras",
na Urca, a cantora Zélia Duncan,
39, convive com vários personagens ilustres.
Um dos vizinhos mais próximos é Roberto Carlos, com quem
costuma cruzar de perto pela estreiteza da rua. Mas há mais. Dentro de casa, com Zélia, moram ou
moraram figuras como Tom Zé,
Rita Lee, Roberto de Carvalho e
Yoko Ono.
São seus cães e gatos, que, segundo ela, "absorvem bem as diferenças". Atualmente incluem as
cadelas Yoko, Pagu e Odeta
("cantora negona de folk") e as
gatas Doralice ("a do Dorival
Caymmi") e Ritinha. Dois gatos já
se foram, Tom Zé ("ele dançou,
foi ingênuo") e Roberto, irmão de
Rita ("tive que separar esse casal
inseparável").
Tal diversidade é a mesma que
ela imprime a "Eu me Transformo em Outras", frase-título extraída de Itamar Assumpção, seu
influenciador central ("antes de
ficar conhecida, meu sonho era
ser uma das cantoras dele").
Embora cante ali os vanguardeiros paulistas Itamar, Luiz Tatit e
Zé Miguel Wisnik, não é disso que
seu novo trabalho trata majoritariamente. Cabem entre as 20 faixas composições de Cartola, Wilson Batista, Ataulfo Alves, Jacob
do Bandolim, Herivelto Martins,
Caymmi, Tom Jobim, Tom Zé etc.
etc. etc.
"Detesto a palavra resgate. Não
resgato nada, a música brasileira
não precisa disso. Eu, sim", tenta
definir o sortimento.
Nascido como um "lado B" do
espetáculo "Sortimento", o novo
trabalho começou a ser apresentado em meios de semana, em
formato mínimo.
Azeitado no palco, acaba gravado ao vivo, mas apenas com os
músicos tocando juntos no estúdio, sem público, aplausos ou
canções redundantes.
O formato arrepiaria gravadoras ultracomerciais de poucos
anos atrás, e Zélia teve de fato que
negociar sua realização com a
Universal, de que é contratada.
Virou CD extracontrato, que a
artista viabilizou por conta própria e lança pelo recém-criado
Duncan Discos, mas com apoio
de distribuição e divulgação da
Universal.
"Estava sentindo uma amargura no mercado, precisava pensar
em alguma coisa boa", sintetiza,
surpresa com a acolhida recebida
pela gravadora.
Não pensou só numa. Há poucas semanas, protagonizou em
São Paulo, com o percussionista
pernambucano Naná Vasconcelos, um show para Itamar, com
músicas de um CD que ele abandonou inédito ao morrer de câncer, em 2003.
Somado esse a "Sortimento" e
"Eu me Transformo em Outras",
são três shows montados e concomitantes à disposição -outra velha novidade que é filha saudável
da crise da indústria.
Por si, por Itamar ou por outras,
mantém o mesmo padrão de
comportamento diante de seu público: ao final de cada show, atende um por um admiradores em fila por um naco de carinho -a rotina às vezes dura horas.
Até por eles, confessa que temeu
trocar o folk-pop até aqui conhecido por vanguardismos como
"Tô" (Tom Zé) e "Capitu" (Tatit)
e sambas de linguagem antiga como "Yayá (Ai, Yoyô)" e "Nega
Manhosa". "São hits no show",
assusta-se.
Embora os sambas de agora
contrastem com os pops autorais
bem-sucedidos de 94 em diante,
não há uma conversão. Cantora
da noite desde Brasília, onde passou infância e adolescência, Zélia
diz que o repertório velho-novo
de agora lhe é bem conhecido
-mas o medo volta a assombrar.
"Não é superbem resolvido, tenho grilos. Tenho horror a ficar
vestindo camisa verde-amarela,
de pandeiro na mão", afirma a fã
contumaz de Neil Young, Joni
Mitchell e Bob Dylan.
Medos à parte, aprendeu com a
agitadora musical Cristina Buarque a gostar de "Eu Não Sou Daqui", de Wilson Batista com o mineiro Ataulfo Alves. "Eu não sou
daqui/ eu sou de Niterói", canta a
mulher niteroiense, bulindo rivalidades e preconceitos entre Niterói e o adotivo Rio.
Na Urca, mora na rua onde morou a portuguesa acariocada e falsa baiana Carmen Miranda, ícone
de brasilidade movediça. Além de
sucessos de Carmen e Aracy de
Almeida, regrava "Deusa da Minha Rua", do repertório de Silvio
Caldas, que, pequena, ouvia na
voz do capixaba Roberto Carlos,
deus de sua rua.
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