São Paulo, quinta-feira, 06 de maio de 2004

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MÚSICA

Cantora mistura linguagens brasileiras em disco semi-independente gravado com violão, bandolim, gaita e bateria

Zélia Duncan vira outras na avenida Brasil

PEDRO ALEXANDRE SANCHES
ENVIADO ESPECIAL AO RIO

Na rua estreita em que mora e de onde idealizou o show e o disco "Eu me Transformo em Outras", na Urca, a cantora Zélia Duncan, 39, convive com vários personagens ilustres.
Um dos vizinhos mais próximos é Roberto Carlos, com quem costuma cruzar de perto pela estreiteza da rua. Mas há mais. Dentro de casa, com Zélia, moram ou moraram figuras como Tom Zé, Rita Lee, Roberto de Carvalho e Yoko Ono.
São seus cães e gatos, que, segundo ela, "absorvem bem as diferenças". Atualmente incluem as cadelas Yoko, Pagu e Odeta ("cantora negona de folk") e as gatas Doralice ("a do Dorival Caymmi") e Ritinha. Dois gatos já se foram, Tom Zé ("ele dançou, foi ingênuo") e Roberto, irmão de Rita ("tive que separar esse casal inseparável").
Tal diversidade é a mesma que ela imprime a "Eu me Transformo em Outras", frase-título extraída de Itamar Assumpção, seu influenciador central ("antes de ficar conhecida, meu sonho era ser uma das cantoras dele").
Embora cante ali os vanguardeiros paulistas Itamar, Luiz Tatit e Zé Miguel Wisnik, não é disso que seu novo trabalho trata majoritariamente. Cabem entre as 20 faixas composições de Cartola, Wilson Batista, Ataulfo Alves, Jacob do Bandolim, Herivelto Martins, Caymmi, Tom Jobim, Tom Zé etc. etc. etc.
"Detesto a palavra resgate. Não resgato nada, a música brasileira não precisa disso. Eu, sim", tenta definir o sortimento.
Nascido como um "lado B" do espetáculo "Sortimento", o novo trabalho começou a ser apresentado em meios de semana, em formato mínimo.
Azeitado no palco, acaba gravado ao vivo, mas apenas com os músicos tocando juntos no estúdio, sem público, aplausos ou canções redundantes.
O formato arrepiaria gravadoras ultracomerciais de poucos anos atrás, e Zélia teve de fato que negociar sua realização com a Universal, de que é contratada.
Virou CD extracontrato, que a artista viabilizou por conta própria e lança pelo recém-criado Duncan Discos, mas com apoio de distribuição e divulgação da Universal.
"Estava sentindo uma amargura no mercado, precisava pensar em alguma coisa boa", sintetiza, surpresa com a acolhida recebida pela gravadora.
Não pensou só numa. Há poucas semanas, protagonizou em São Paulo, com o percussionista pernambucano Naná Vasconcelos, um show para Itamar, com músicas de um CD que ele abandonou inédito ao morrer de câncer, em 2003.
Somado esse a "Sortimento" e "Eu me Transformo em Outras", são três shows montados e concomitantes à disposição -outra velha novidade que é filha saudável da crise da indústria.
Por si, por Itamar ou por outras, mantém o mesmo padrão de comportamento diante de seu público: ao final de cada show, atende um por um admiradores em fila por um naco de carinho -a rotina às vezes dura horas.
Até por eles, confessa que temeu trocar o folk-pop até aqui conhecido por vanguardismos como "Tô" (Tom Zé) e "Capitu" (Tatit) e sambas de linguagem antiga como "Yayá (Ai, Yoyô)" e "Nega Manhosa". "São hits no show", assusta-se.
Embora os sambas de agora contrastem com os pops autorais bem-sucedidos de 94 em diante, não há uma conversão. Cantora da noite desde Brasília, onde passou infância e adolescência, Zélia diz que o repertório velho-novo de agora lhe é bem conhecido -mas o medo volta a assombrar.
"Não é superbem resolvido, tenho grilos. Tenho horror a ficar vestindo camisa verde-amarela, de pandeiro na mão", afirma a fã contumaz de Neil Young, Joni Mitchell e Bob Dylan.
Medos à parte, aprendeu com a agitadora musical Cristina Buarque a gostar de "Eu Não Sou Daqui", de Wilson Batista com o mineiro Ataulfo Alves. "Eu não sou daqui/ eu sou de Niterói", canta a mulher niteroiense, bulindo rivalidades e preconceitos entre Niterói e o adotivo Rio.
Na Urca, mora na rua onde morou a portuguesa acariocada e falsa baiana Carmen Miranda, ícone de brasilidade movediça. Além de sucessos de Carmen e Aracy de Almeida, regrava "Deusa da Minha Rua", do repertório de Silvio Caldas, que, pequena, ouvia na voz do capixaba Roberto Carlos, deus de sua rua.


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